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26 Nov 2020
Papa Francisco: uma crise serve para revelar o que vai nos nossos nossos corações
Texto adaptado pelo The New York Times a partir do livro “Let Us Dream: The Path to a Better Future”, do Papa Francisco, escrito com Austen Ivereigh. A tradução e adaptação para língua portuguesa é do DACS.
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  © Samuel Rodriguez/United Nations on Unsplash

Neste último ano de mudança, a minha mente e o meu coração transbordaram de pessoas. Pessoas em quem penso e por quem rezo – e às vezes choro –, pessoas com nomes e rostos, pessoas que morreram sem se despedir daqueles que amavam, famílias em dificuldade, até mesmo a passar fome, porque não há trabalho.

Às vezes, quando pensamos globalmente, podemos ficar paralisados: há tantos lugares de conflito aparentemente incessante; há tanto sofrimento e necessidades. Acho que ajuda focarmo-nos em situações concretas: vemos rostos a procurar vida e amor na realidade de cada pessoa, de cada povo. Vemos a esperança escrita na história de cada nação, gloriosa porque é uma história de luta diária, de vidas destruídas pelo auto-sacrifício. Portanto, em vez de nos deixarmos oprimir, devemos ponderar e responder com esperança.

Esses são momentos na vida que podem proporcionar a mudança e conversão. Cada um de nós teve a sua própria “paralisia” ou, se ainda não a tivemos, um dia teremos: doença, o fracasso de um casamento ou de um negócio, alguma grande decepção ou traição. Tal como no confinamento pela Covid-19, esses momentos geram uma tensão, uma crise que revela o que vai nos nossos corações.

Em cada caso de “Covid”, por assim dizer, em cada “paralisia”, o que se revela é o que precisa de ser mudado: a nossa falta de liberdade interna, os ídolos a que servimos, as ideologias pelas quais tentamos viver, os relacionamentos que negligenciamos.

Quando fiquei muito doente, aos 21 anos, tive a minha primeira experiência de limite, de dor e solidão. Mudou a maneira como eu via a vida. Durante meses não soube quem eu era, se viveria ou morreria. Os médicos também não sabiam se eu conseguiria sobreviver. Lembro-me de abraçar a minha mãe e dizer: “diga-me apenas se vou morrer." Estava no segundo ano de preparação para o sacerdócio no seminário diocesano de Buenos Aires.

Lembro-me da data: 13 de Agosto de 1957. Fui levado a um hospital por um prefeito que percebeu que o meu tipo de gripe não era o tipo que se trata com aspirina. Retiraram-me imediatamente um litro e meio de água de meus pulmões e lá fiquei a lutar pela vida. No mês de Novembro seguinte, operaram-me para retirar o lobo superior direito de um dos pulmões. Tenho uma ideia de como as pessoas com Covid-19 se sentem enquanto lutam para respirar através de um ventilador.

Lembro-me particularmente de duas enfermeiras dessa época. Uma era a enfermeira-chefe da ala, uma irmã dominicana que havia sido professora em Atenas antes de ser enviada para Buenos Aires. Fiquei a saber mais tarde que, após o primeiro exame do médico, depois de ele ter saído, ela disse às enfermeiras para dobrarem a dose do medicamento que ele havia prescrito — basicamente penicilina e estreptomicina – porque ela sabia por experiência própria que eu estava a morrer. A Irmã Cornelia Caraglio salvou a minha vida. Devido ao seu contacto regular com pessoas doentes, ela entendia melhor que o médico aquilo de que eles precisavam e teve a coragem de agir de acordo com seu conhecimento.

Outra enfermeira, Micaela, fazia o mesmo quando eu sentia dores intensas, prescrevendo secretamente doses extra de analgésicos fora do horário previsto. Cornelia e Micaela estão no Céu agora, mas vou sempre dever-lhes muito. Elas lutaram por mim até ao fim, até à minha eventual recuperação. Elas ensinaram-me o que é usar a ciência, mas também a saber quando ir além para atender a necessidades específicas. E a grave doença que vivi ensinou-me a depender da bondade e da sabedoria dos outros.

Este tema de ajudar os outros permaneceu comigo nos últimos meses. Durante o confinamento, muitas vezes rezei por aqueles que procuram todos os meios para salvar a vida de outras pessoas. Muitas enfermeiras, médicos e cuidadores pagaram esse preço de amor, juntamente com padres, religiosos e pessoas comuns cujas vocações eram o serviço. Retribuímos o seu amor fazendo o luto por eles e honrando-os.

Quer tivessem ou não consciência disso, a sua escolha atestava uma crença: que é melhor viver uma vida mais curta servindo aos outros, do que uma vida mais longa resistindo a esse chamamento. É por isso que, em muitos países, as pessoas ficavam nas suas janelas ou nas suas portas e as aplaudiam com gratidão e admiração. Eles são os santos da porta ao lado, que despertaram algo importante nos nossos corações, tornando mais uma vez credível o que desejamos instilar com a nossa pregação.

Eles são os anticorpos do vírus da indiferença. Eles lembram-nos que nossa vida é um dom e que crescemos dando de nós mesmos, não nos preservando, mas perdendo-nos no serviço.

Com algumas excepções, os governos têm feito grandes esforços para colocar o bem-estar do seu povo em primeiro lugar, agindo de forma decisiva para proteger a saúde e salvar vidas. As exceções foram constituídas por alguns governos que ignoraram as dolorosas evidências de mortes crescentes, com consequências inevitáveis e graves. Mas a maioria dos governos agiu com responsabilidade, impondo medidas rígidas para conter o surto.

Mesmo assim, alguns grupos protestaram, recusando-se a manter distância, marchando contra as restrições às viagens — como se as medidas que os governos devem impor para o bem do seu povo constituíssem algum tipo de ataque político à autonomia ou à liberdade pessoal! Olhar para o bem comum é muito mais do que a soma do que é bom para os indivíduos. Significa ter consideração por todos os cidadãos e procurar responder com eficácia às necessidades dos menos favorecidos.

É muito fácil para alguns pegar numa ideia — neste caso, por exemplo, a da liberdade pessoal — e transformá-la numa ideologia, criando um prisma através do qual julgam tudo.

A crise do coronavírus pode parecer especial porque afecta a maior parte da humanidade. Mas é especial apenas na forma como é visível. Existem milhares de outras crises que são igualmente terríveis, mas estão suficientemente longe de alguns de nós para que possamos agir como se elas não existissem. Pensem, por exemplo, nas guerras espalhadas por diferentes partes do mundo; na produção e comércio de armas; nas centenas de milhares de refugiados que fogem da pobreza, fome e falta de oportunidades; nas mudanças climáticas. Essas tragédias podem parecer distantes de nós, como parte do noticiário diário que, infelizmente, não nos leva a mudar as nossas agendas e prioridades. Mas, tal como a crise da Covid-19, elas afectam toda a humanidade.

Olhemos para nós agora: colocamos máscaras para nos protegermos a nós mesmos e aos outros de um vírus que não podemos ver. Mas, e quanto a todos os outros vírus invisíveis dos quais precisamos de nos proteger? Como vamos lidar com as pandemias ocultas deste mundo, as pandemias de fome e violência e mudanças climáticas?

Se quisermos sair desta crise menos egoístas do que quando entramos, temos que nos deixar ser tocados pela dor dos outros. Há uma frase em “Hyperion, de Friedrich Hölderlin, que me chama a atenção sobre como o perigo que ameaça durante uma crise nunca é total; há sempre uma saída: Onde está o perigo, também aumenta o poder de economia. Essa é a genialidade da história humana: há sempre uma maneira de escapar da destruição. Onde a humanidade deve agir é precisamente aí, na própria ameaça; é aí que a porta se abre.

Este é o momento de sonhar alto, de repensar as nossas prioridades — o que valorizamos, o que queremos, o que procuramos — e de nos comprometermos a actuar no nosso dia-a-dia sobre aquilo que sonhamos.

Deus pede-nos que ousemos criar algo novo. Não podemos voltar às falsas garantias dos sistemas políticos e económicos que tínhamos antes da crise. Precisamos de economias que dêem a todos acesso aos frutos da criação, às necessidades básicas da vida: terra, alojamento e trabalho. Precisamos de uma política que possa integrar e dialogar com os pobres, os excluídos e os vulneráveis, que dê voz às pessoas nas decisões que afectam as suas vidas. Precisamos de diminuir o ritmo, fazer um balanço e projectar melhores maneiras de vivermos juntos nesta terra.

A pandemia expôs o paradoxo de que, apesar de estarmos mais próximos, também estamos mais divididos. O consumismo febril quebra os laços de pertença. Faz com que nos concentremos na nossa autopreservação e deixa-nos ansiosos. Os nossos medos são exacerbados e explorados por um certo tipo de política populista que busca o poder sobre a sociedade. É difícil construir uma cultura de encontro, em que nos encontramos como pessoas com uma dignidade compartilhada, dentro de uma cultura do descartável que considera o bem-estar dos idosos, dos desempregados, das pessoas com deficiência e dos nascituros como periféricos ao nosso próprio bem-estar.

Para sairmos melhores desta crise, temos que recuperar o conhecimento de que, como povo, temos um destino comum. A pandemia lembrou-nos que ninguém é salvo sozinho. O que nos liga uns aos outros é o que comumente chamamos de solidariedade. A solidariedade é mais do que actos de generosidade, por mais importantes que sejam; é o chamamento para abraçarmos a realidade de que estamos ligados por laços de reciprocidade. Sobre esta base sólida podemos construir um futuro melhor, diferente e humano.

Papa Francisco

(Este texto foi adaptado pelo The New York Times a partir do livro “Let Us Dream: The Path to a Better Future”, do Papa Francisco, escrito com Austen Ivereigh. A tradução e adaptação para língua portuguesa é do DACS)

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