Arquidiocese de Braga -

17 fevereiro 2021

Com mãos de Samaritano

Fotografia Avelino Lima

Homilia do Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, na Quarta-feira de Cinzas.

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Inevitavelmente este ano teremos uma Quaresma e uma Semana Santa diferentes. Ainda nutrimos alguma esperança de que a Páscoa possa ser celebrada com sinais exteriores de festa e regozijo. Mas, o mais provável é que tudo aconteça sem a vertente exterior. É de prever não andarmos pelas ruas com procissões e outras manifestações religiosas, o que nos causa muita tristeza. Mas não podemos desperdiçar a graça deste tempo favorável. Temos diferentes caminhos para o viver com intensidade.

Se estávamos habituados a um itinerário com iniciativas já predeterminadas, deveremos aceitar que a fé pode encontrar outros modos de ser vivida. Restringir as celebrações ao interior da Catedral não nos dá um prazer especial, mas permitirá, ou deverá permitir, uma aventura interior onde cada um é capaz de se questionar sobre a sua identidade cristã alicerçada somente em Cristo. Ele, nos diversos momentos da Sua paixão, não andará pelas ruas da cidade mas quer fixar o Seu olhar em cada um – sacerdotes e leigos – e, ao mesmo tempo, na Igreja que somos ou devemos ser. Ele quer marcar encontro. Aqui está o centro da Quaresma. Precisamos de interiorizar o amor de Deus e permitir que Ele indique efectivamente as opções em termos de coerência e autenticidade. É tempo de conversão. Temos dito, muitas vezes, que não queremos uma Igreja auto-referencial que vive da preservação de tradições e costumes. Sentimos a exigência de mergulhar no essencial: o encontro com Cristo que gera comportamentos evangélicos de vida. Importa fazer uma experiência profundamente espiritual, preocupando-nos com tudo o que é humano e contribuindo para uma sociedade onde a dignidade de todos é respeitada e defendida, sobretudo nos momentos em que é ignorada e esquecida.

Esta Quaresma e Semana Santa, despidas de adereços exteriores, terão de se focar no programa que nos acompanha. Com mais tempo para reflectir intuiremos novos desafios. Recordo o título de um livro saído há pouco tempo: “Demolição e reconstrução”. A demolição de muita coisa é algo que não poderemos evitar. Não bastam as lamentações. Em tudo há uma mensagem positiva que nos deve dar alento e coragem. Os melhores tempos da história da Igreja foram aqueles que exigiram trabalho onde o caminho não estava traçado mas era importante avançar fazendo escolhas, nem sempre de um modo seguro. É bela a luz alta do meio dia. Não tem menos encanto o raiar da aurora, abrindo-nos a um novo dia do que qual não reconhecemos cabalmente o que nos oferecerá. É possível reconstruir não só seguindo caminhos já percorridos mas descortinando outros que esperam por nós.

O projecto para a vida pessoal e comunitária está devidamente delineado. É evangélico e foi assumido por toda a comunidade arquidiocesana. Cristo é o Bom Samaritano que devemos imitar e trazer para a cena da actualidade. Toda a Sua vida foi compaixão e acção de libertação. Agia todos os dias desde que fosse necessário libertar das vulnerabilidades. Por Ele e com Ele queremos dar consistência a uma Igreja que se apresenta como estalagem onde todos são acolhidos e tratados nas suas limitações físicas e espirituais. Uma estalagem de portas abertas onde todos podem entrar mas onde os pobres e abandonados tem um lugar especial. Aberta a todos, sabe que deve sair para se encontrar com todas as mazelas encontradas nos recantos mais estranhos da existência humana. Nada lhe é estranho. Apaixona-se por tudo e quer dar, dentro das suas limitações, respostas que libertam dos males. Seguindo o Bom Samaritano, vamos dando vida a uma Igreja acolhedora e curadora, onde os intérpretes do trabalho na estalagem são os cristãos, sem excluir ninguém. Não há trabalhos exclusivos. Todos são insubstituíveis e a cada um toca uma tarefa imprescindível. A cada um a vontade de colocar todas as forças e energias para que o resultado final não seja de ninguém mas de todos.

Conhecido o projecto de uma nova Igreja, protagonizando uma responsabilidade pessoal e seguindo os passos de quem o delineou, torna-se necessário aceitar que o trabalho não admite aventureirismos pessoais. Muitos querem ser navegadores solitários segundo as suas ideias. Alheiam-se de um plano conjunto e teimam nas suas opções. Os tempos que correm exigem unidade e sintonia de intenções. Sabemos que um dos males da sociedade moderna é o divisionismo. Com ele não se vai a lado nenhum e, neste aspecto, a Igreja também tem de ser referência.

Nesta Quaresma invulgar orientemos todas as nossas reflexões e actividades, feitas em Braga mas também em todas as paróquias, para meditar nos momentos da paixão de Cristo, reconhecendo-O nos irmãos que sofrem à margem da estrada da vida. Há muitos rostos. Alguns conhecidos e muitos mais por encontrar. Motivados pela Palavra sejamos capazes de fazer um exame de consciência colectiva com alguma coragem. Ninguém ama a Deus que não vê se não ama o próximo que vê.

Sabemos que não somos discípulos de um Cristo sofredor. A Quaresma e Semana Santa apontam-nos para a Páscoa. Esta é o centro do nosso credo. Vivemos para mostrar Cristo vivo nas pessoas e nas estruturas. Deixemos que Ele nos interpele. Por onde Ele passa nada fica na mesma.

Vamos aproveitar o ambiente digital mas não nos resignemos ao virtual. Aproveitemo-lo como meio pastoral e transmissor de uma mensagem a semear, em todos os lugares, por intermédio de muitos protagonistas. A vida não é virtual. É o concreto das situações que nos interessa. Neste sentido, não podendo encontrar-nos na Catedral ou nas nossas igrejas paroquiais, peço às nossas famílias que sejam uma Igreja doméstica onde se escuta, reza e se compromete. Muita criatividade pode acontecer nos recantos dos nossos lares. Também aí importa experimentar a sinodalidade para viver como samaritanos. Acredito que muitas experiências interessantes podem surgir. E, porque acreditamos numa Igreja comunhão, peço que nos enviem experiências, fotografias do recanto familiar onde todos se encontram, interpelações sobre o que é importante para que a Diocese caminhe ainda mais com as famílias. Acredito que não nos deixarão sozinhos a pensar na Igreja que queremos para este tempo.

Rezo para que aproveitemos este tempo especial. Não se caminha sem um itinerário bem definido. Paremos, pessoalmente ou em família, e anotemos compromissos concretos em ordem a ser verdadeiros estalajadeiros da Igreja que só quer seguir o projecto delineado por Cristo, o Bom Samaritano. Concretizemos, para isso, a minha mensagem para a Quaresma a que dei o título “Quaresma, tempo para cuidar do próximo”. E não esqueçamos: menos exterioridade, mas maior crescimento interior para, com alegria, proclamarmos Cristo ressuscitado e presente na história da Humanidade.

Teremos, como já o referi, uma Quaresma e Semana Santa sem procissões e outras manifestações exteriores. Poderemos cair numa certa tristeza ou nostalgia por aquilo que não teremos. Já dissemos que este tempo deve ser vivido a partir do interior de cada um.

O ano passado sugeri que fossem construídas, em cada casa, cruzes floridas. Poderemos repetir a experiência mas colocando ao lado umas mãos representadas de diversos modos: pintadas, fotografadas, construídas. Seriam as mãos do Samaritano que as sujou para cuidar do próximo. Porém, não importa só um sinal. Teremos de retirar propostas para o quotidiano da vida pessoal e familiar. Não são reprodução. Devem ser interpelação ou provocação. Foram dadas por Deus para servir em muitas muitas aplicações: escrever, trabalhar, cuidar.

Sob este sinal das mãos que falam, quero propor que retiremos da figura do padrinho/madrinha um conjunto de atitudes. Eles recordam-nos o baptismo e a Quaresma prepara-nos para a renovação das promessas baptismais na Vigília Pascal. Na tradição minhota, sublinham-se alguns gestos de ofertas em pleno tempo pascal. Não há padrinho/madrinha que não se recorde do seu afilhado nesta época. Este ano poderemos escolher os nossos afilhados. Pessoas concretas que conhecemos, instituições, a nossa comunidade paroquial, a diocese. Não nos vamos preocupar só com as ofertas materiais. Estas podem ser o mais fácil, embora importante. Há muito mais para oferecer. Basta deixar que a imaginação funcione e encontraremos para cada dia muitas ideias. O anonimato poderá mostrar a qualidade da caridade, sugerida pelo programa pastoral. Os Actos dos Apóstolos recordam-nos o motivo que deve estar presente em tudo. “Há mais alegria em dar do que em receber”. Quantos afilhados vou escolher? Pessoas? Paróquia? Fundo Partilhar com Esperança?

Recordo uma experiência dos meus tempos de vida à frente de uma comunidade. Na Quaresma jogávamos o jogo “Um amigo desconhecido”. No início sorteávamos uma pessoa que seria nosso(a) amigo(a) durante a Quaresma sem ele saber quem era. Nesse tempo rezava-se por ele, faziam-se brincadeiras, ofereciam-se pequenas coisas procurando ir ao encontro do que ele gostaria. Ficávamos contentes quando não se conseguia saber quem era o amigo desconhecido. Bastavam os gestos. Hoje, não precisamos de fazer um sorteio para ver qual é a pessoa a amar. Nós podemos escolher. E, infelizmente, temos muito por onde escolher.

Neste convite, a partir da caridade que parte de dentro, acrescento o desejo de que este tempo de Quaresma seja marcado pela alegria. Andamos todos muito sombrios e envolvidos pelos problemas. Parece que o mundo está para acabar. Não é verdade! Há muita vida para viver. No interior de nós mesmos encontremos forças para mostrar que a vida continua a ser bela e que vale a pena vivê-la. E, se a Quaresma é tempo de jejum como sinal de penitência, recordemo-nos de quanto nos diz S. Mateus. “Quando jejuardes não fiqueis de cara triste. Perfumai a cabeça” (Mt.6,16). Antecipemos a Páscoa e mostremos quanto vale a nossa fé. O mundo precisa de ver sinais de esperança. Há muita gente a morrer por causa do pessimismo. Por muitas restrições que tenhamos de abraçar, a vida vale muito mais. Cuidemos de nós e do próximo. Sintamos a alegria e demos felicidade. Precisamos de levantar o ânimo. Não fiquemos no negativo. Estamos a precisar desta campanha e o tempo da Quaresma é favorável para que levantemos o ânimo. A Páscoa está perto.

Acrescento, ainda, um outro pormenor. O autor da carta aos Hebreus diz “Prestemos atenção aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras.” As nossas iniciativas, pessoais e familiares, devem ser conhecidas. Sendo-o, podem ser imitadas. Estimulemo-nos uns aos outros. Não deixem, por isso, de nos enviar as experiências que o amor vai suscitando. As nossas mãos de Samaritanos, inventando iniciativas para sermos padrinhos/madrinhas, não devem ficar nas gavetas das recordações. Enviem-nos**. Precisamos de fotografias, desenhos, mensagens, pequenos filmes...

Queremos ser uma Igreja Sinodal, onde caminhamos juntos e aprendemos com os outros. Na Arquidiocese veremos o uso a dar a todo o material que nos chegar. A publicação pode ser uma hipótese. Basta que muitos queiram. Não deixem murchar as flores que aparecerão nas vossas vidas, das vossas famílias, das comunidades.

Saibamos ter uma Quaresma e Semana Santa mais rica porque mais autêntica. Poderemos ganhar muito mais tendo muito menos coisas exteriores. Eu estou preparado para isso. E tu?


† Jorge Ortiga,
Arcebispo Primaz


** Os testemunhos devem ser enviados para o e-mail [email protected], ao cuidado da Secretaria para a Pastoral.


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Homilia na Quarta-Feira de Cinzas