Arquidiocese de Braga -

28 março 2021

Percorrer a gramática do cuidado

Fotografia © Francisco Assis / DM

Homilia no Domingo de Ramos

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Na originalidade desta Semana Santa, em tempo de pandemia, continuamos a querer trabalhar os desafios que cada cerimónia nos vai lançando. Este ano não temos os estímulos nem a grandiosidade das procissões e das manifestações artísticas. Estamos a viver a Semana Santa em estado puro.

Nesta manhã, teríamos aberto as portas da Catedral batendo três vezes com a Cruz de Cristo. Um gesto do Rito Bracarense, cheio de significado. É Cristo que nos abre as Portas da Vida, fazendo com que o sofrimento seja sempre passagem. Passamos pelas dores e sofrimentos do Calvário, mas acreditamos que, com Cristo, experimentaremos a alegria da manhã da Ressurreição. Na cruz, Cristo assumiu a debilidade humana e mostrou que o amor vivido e oferecido é óleo da consolação e da paz. É uma alquimia que permanece como caminho a seguir. A Paixão de Jesus recorda-nos as Suas paixões, que teremos de tomar como nossas, para que a incontornável vulnerabilidade humana encontre uma explicação e não nos impeça de sermos felizes.

É este amor de entrega de vida que nos diz que, juntos, qual expressão do Corpo de Cristo, existimos para prosseguir a missão do Mestre, vivendo para cuidar. A beleza da vida humana está na doação de si mesmo. Gravita ao redor de tudo o que a Humanidade exige, particularmente nos momentos que parecem de abandono e de derrota na realização dos sonhos. Tudo passa. Só o amor permanece! Este é o grito da Cruz que devemos ouvir todos os dias, não como um mero toque emotivo, mas um alerta para uma compaixão redentora de todos os medos da sociedade.

A Paixão de Cristo é, deste modo, o exercício de colocar diante nós um estilo de vida que se estrutura em opções de entrega e dedicação aos outros. Tudo quanto Jesus ensinou está presente no alto do Monte Calvário. E, não há como fugir, a morte faz parte desse processo. Este ano não presenciámos as procissões nas ruas. Entramos, por sua vez, no seu conteúdo mais profundo e interpretamos a “procissão da Humanidade” à luz da doutrina que foi pregada nas montanhas e vales da Galileia. Na cruz mergulhamos na doutrina pregada por Cristo e que a Igreja foi reforçando nos princípios da sua Doutrina Social. 

O Santo Padre recordou-nos que a paz e a convivência social entre as nações, expressão de uma fraternidade que une na prossecução dos interesses pessoais, resulta de uma doutrina que se estuda, compreende, anuncia e concretiza. Não são teorias abstratas. São pilares estruturantes, uma verdadeira gramática para interpretar a vida. Uma bússola que orienta e centra sempre no essencial, no que perdura.

Por tudo isto, sugiro olhar para a Cruz de Cristo como atitude primária de uma Semana Santa que vai ao núcleo duro das celebrações. Nela encontramos o sofrimento porque uma doutrina não foi ou não está a ser vivida.

A doutrina do Filho, enviado do Pai, mostrava a dignidade de todo e qualquer ser humano. É um fim em si mesmo para além da cor, da raça, do credo, dos bens que se tem ou poderá ter, como migrante ou residente de pleno direito. Dignidade na inviolabilidade da sua vida, no constituir e viver em família, no sentir-se comunidade e sociedade acreditando que ninguém vive sozinho. Cada um é amado por Cristo por aquilo que é e não por aquilo que tem.

Propusemo-nos a cultura do “cuidado do próximo” como promoção da dignidade e dos direitos das pessoas. A história da Humanidade ferida não é para ser vista nas notícias da comunicação social e nos meios digitais. Por vezes dá a impressão que nos distraímos com algumas iniciativas sociais mas não entramos naquilo que importa. Enquanto existirem pessoas e famílias privadas de dignidade humana, a Cruz de Cristo é somente um objecto de culto e decorativo. Ela não permite que nos resignemos à realidade nem que nos tranquilizemos com o que já se encontra feito. As mãos do Samaritano estão a solicitar às nossas comunidades uma maior intervenção, sem medos nem complexos, como tradução de uma Doutrina Social nascida do Evangelho genuíno.

A doutrina interpretada pelo Filho de um Pai Criador, da Humanidade e da natureza, diz-nos que da dignidade, unidade e igualdade de todas as pessoas deriva o princípio do bem comum que consiste no “conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar plena e facilmente a própria perfeição”. Não é somente dos interesses individuais mas é o bem de todos os Homens e do Homem todo. Somos “com” e “pelos” outros. Crescemos juntos e vivemos interligados numa dependência mútua: fazemo-lo através da promoção integral, numa atenção à dimensão material e espiritual. Esquecer uma ou outra gera um desequilíbrio. E envolve o “empenho pela paz, pela proteção do ambiente, por uma sólida ordem jurídica, pela prestação de serviços essenciais às pessoas como direito do homem, alimentação, habitação, trabalho, educação e acesso à cultura, saúde, transportes, livre circulação das informações e tutela da liberdade religiosa”. Sendo bem comum, empenha a todos os membros da sociedade de acordo com as próprias possibilidades.

Propusemo-nos a promoção da cultura do cuidado do próximo. A Cruz de Cristo está a denunciar comportamentos individualistas e pouco comprometidos com o bem de todos. Tudo o que implique a qualidade de vida, não minha mas de cada um, exige que trabalhemos juntos para que não falte nada de essencial. A história não é constituída pelos outros, quer a nível civil quer a nível religioso. Jesus não morreu por alguns. Era uma Humanidade nova que lhe interessava. O bem de todos não é verdadeira opção política e teremos algo a dizer para que isso aconteça. Há muito partidarismo e sentido de ajudar alguns em detrimento de outros. Muitos são esquecidos e poucos usufruem de benesses e regalias. A vida é fácil para grupos e a maioria continua refém de necessidades essenciais. A Cruz de Cristo impele a um trabalho de maior intervenção na causa do bem comum.

A doutrina que se ouve da Cruz de Cristo interpela à solidariedade. Os outros nunca são meros dados estatísticos nem meios para que atinja os meus fins e depois, não me sendo úteis, descartar, marginalizar e esquecer. São o meu “próximo” que caminham comigo nas mesmas estradas de percalços e desventuras. Os problemas envolvem a todos e são de toda a ordem e feitio. Viver nem sempre é fácil e só estabelecer laços permitirá encontrar soluções. Vimos de um Pai comum e, como consequência, somos verdadeiramente irmãos, não em alguns momentos mas sempre. Na liturgia e fora da liturgia. Jesus foi o Homem solidário com toda a Humanidade até a morte na cruz. O Deus em que acreditamos é um Deus connosco que assume as enfermidades do Seu povo e caminha com ele. O próximo não é só alguém com direitos e com igualdades fundamentais. Não é mero benefício do bem comum. É uma imagem viva de Deus Pai, resgatado pelo Sangue de Jesus Cristo e feito objecto de acção permanente do Espírito Santo. Por isso deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que se ama o Senhor, e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por Ele, mesmo ao sacrifício Supremo: “dar a vida pelos próprios irmãos” (1 Jo 3,16).

A cultura de cuidar do próximo supõe comportamentos que nos identifiquem com qualquer ser humano, para sofrer e alegrar-se com ele. A cruz da vida deve ser partilhada e os cireneus são sempre imprescindíveis. Ser solidário é envolver-se com a vida dos outros e da sociedade. Não se trata de simples campanhas em determinadas contingências sociais. É uma atitude de alma que não foge aos problemas e procura encontrar a soluções mais oportunas. Há uma comunhão de vidas, para o bem e para o mal, e não justifica que fechemos os outros e caminhemos numa vida de egoísmo fechada em si mesmo. A Cruz de Cristo rasga tudo o que separa para unir na concórdia e harmonia.

A doutrina que se ouve da Cruz aponta caminhos de participação que se exprime num conjunto de iniciativas que as pessoas interpretam, como indivíduos ou associadas a outras, no mundo da religião, da cultura, da política, da economia, sempre para o bem de todos e a promoção da dignidade de cada um. Jesus não esperou que outros encarassem a obra da Redenção. Deu tudo o que tinha e possuía para que a Humanidade pudesse usufruir de um novo estatuto de filhos de Deus e membros da Igreja.

A cultura de cuidar do próximo implica e supõe esta capacidade de participação onde tudo é colocado em comum. Não somos peregrinos solitários. Temos objectivos comuns que só podem ser alcançados pela integração da diversidade de competências e talentos. Exige trabalho e a entrega.

Gostaria de focar esta Semana Santa diferente neste aperceber-se da doutrina que a Cruz vai falando como fez ao longo dos séculos. As mãos do Samaritano que cuidam, como símbolo que coloquei para esta Quaresma, são as mãos de cada um que devem lutar pela dignidade de todos, não permitindo marginalidade nem exclusão de qualquer género, pela redescoberta do valor do bem comum a repartir por todos, pelas concretizações da solidariedade como expressão de um amor com rosto cristão e pela participação responsável nos destinos da história da Humanidade civil e religiosa. 

Voltei a falar de uma doutrina conhecida. Quantas vezes ouvimos falar da dignidade de cada pessoa humana, do bem comum, da solidariedade e da participação? No passado talvez não tenhamos tido tempo para parar e pensar. Este ano oferece-nos esta graça. Quais os frutos que esta Semana Santa deixará? Tudo permanecerá na mesma? Pensar na Cruz de Cristo não permite imobilismos.  

Acredito que a nossa Diocese vai ser mais sinodal porque caminha com os outros e Samaritana porque cuida de todos quantos vai encontrando à margem da estrada, expressão de uma Humanidade ferida e perdida. Não quero acreditar que tudo continue na mesma.

 

 † Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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