Arquidiocese de Braga -

15 setembro 2016

From 13°34'14.6"S 39°49'18.8"E with love (ou uma carta do lado de dentro)

Fotografia Pe. Jorge Vilaça

CMAB

Pe. Jorge Vilaça, padre da Comunidade Salama! Cooperação Missionária Braga-Pemba

Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.

Daniel Faria

 

18h00: Fim do dia. Só agora me dou conta que, pela primeira vez na vida, deixei de ter morada. Habito numa casa situada num caminho sem nome, sem número nem caixa de correio. Vou deixar de esperar carteiro, carta ou encomenda. Para os meus vizinhos, que partilham a mesma condição, nunca foi diferente. Mas, para mim, é estranho não ter morada postal. Passei a ser só remetente, a ter endereços só por dentro. A minha nova morada é “já ali”, na casa da Missão, no final das mangueiras. Quando há dias, por questões legais, me pediram a morada, pensei: “escrevo o quê?” (acabei pedindo uma emprestada, a 160km de distância). E mesmo sendo utilizador de e-mail (que abruptamente ficou organizado), sou confesso admirador do ritual das cartas: um postal escrito à mão; um envelope; o selo; a recepção ou o envio; a espera do carteiro; a emoção ao abrir; o desenho da caligrafia; o cheiro; a releitura lenta... Estou, portanto, numa coordenada de GPS, mais concretamente em 13°34'14.6"S 39°49'18.8"E. O dia está no fim e no meu país natal tomam-se ainda banhos de sol.

19h00: Uma noite de Agosto. Não é só noite. Aqui a noite é espessa: não há uma única luz acesa. Estamos cá fora, na varanda, sentados; ouvem-se somente as risadas dos vizinhos (ri-se tanto nesta latitude!). O céu continua baixo, quase a ponto de me atrever tocar a lua. Hoje, porém, quase não se vêem estrelas. O único movimento físico que faço é de luta com o actual maior inimigo, o mosquito: aproxima-se das orelhas com aquele nano-som que neste lugar sem morada corresponde a um ataque nuclear. Resultado: não parece certa a teoria da selecção natural das espécies. Adiante. Vamos tecendo conversas lentas. A cada pausa, explode um silêncio quente. Experimento a lanterna e corto o escuro às fatias. Entretanto, atrás de nós, dentro da casa, acendem uma única lâmpada. Uma simbólica chama, fruto do sol, que pinta a casa de cores, de livros, de janelas, de comida; que abre os olhos à curiosidade; que acende uma esfera protectora onde se entra.

20h00: O jantar é arroz, feijão e atum. Entoa-se uma oração. Tranquilamente amassamos a comida com histórias, do longe e do perto. Uma história de amor, primeiro. De alguém que pediu a Deus uma esposa; que lhe foi miraculosamente “dada” há 17 anos. Uma segunda história de amor: alguém, casado, que diz: “Sou missionário; nunca posso recusar partir, se o Bispo me pede”. Não rezámos o terço, mas desfiaram-se dezenas de mistérios: dolorosos, gozosos, gloriosos, luminosos... Já quase não vemos o rosto uns dos outros, mas guia-nos a voz e os sons de assentimento (hum!), aqui tão típicos. A energia aguentará, na melhor das hipóteses, mais trinta minutos. Vou perdendo palavras, minhas e dos outros, pelo sono. O dia foi longo. Muito longo. Demasiado...

21h30: Vou dormir. Rezo de memória o hino da noite da liturgia das horas. Diz assim o refrão: “Luz terna, suave, no meio da noite / leva-me mais longe / não tenho aqui morada permanente / leva-me mais longe”. Peço à Luz que me leve mais longe, pois não tenho morada permanente... Pego então em três cartas que me entregaram para ler na viagem. Dentro da rede mosquiteira que cobre a cama, ligo a lanterna e abro cada uma delas. Leio, devagar. Uma com um postal de Barcelona; outra com um postal da Holanda; outra com uma foto de Portugal. Todas remetidas por pessoas que amo; que não precisam da minha morada; que sabem já o que são palavras e sobretudo silêncios. Somos já lugares uns para os outros. Inicia-se então um grande silêncio. Porque a missão tem sobretudo lado de dentro. E, no fim, só temos o que demos. E o(s) que(s) amamos. Um abraço, de lado nenhum ou do lado de dentro.

Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 15 de setembro de 2016.


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Igreja Viva 15 setembro 2016