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23 Mai 2018
Bom Jesus do Monte: Das Origens a Património Mundial
Conferência sobre o Bom Jesus na Academia Portuguesa de História
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  © Luis Santos

Inicio esta despretensiosa partilha de alguns elementos históricos com uma declaração de interesse. Os meus parcos conhecimentos históricos, adquiridos na Faculdade de História da Universidade Gregoriana, em Roma, com a experiência docente durante os anos anteriores ao episcopado e, particularmente, algum conhecimento da multisecular história da Arquidiocese de Braga, permitiram escolher um argumento com pertinência e adequação a este local e a esta Academia.

A circunstância de viver a responsabilidade de conduzir uma grande Diocese faz com que nos apaixonemos por determinadas problemáticas que acompanham, consciente ou inconscientemente, o quotidiano da nossa existência.

Devo confessar que, nos últimos anos, me apaixonei pela Candidatura do Bom Jesus a Património da Humanidade. A candidatura não foi elaborada por mim. Era um mero companheiro de uma viagem de grande responsabilidade e exigência e procurei dar alento e estímulo com a presença nos momentos mais significativos e com as palavras, não para entusiasmar quem estava mais apaixonado do que eu, mas para oferecer presença e partilhar as alegrias que iam sendo alcançadas.

Recordo o que Simone Beauvoir afirmava. “O presente não é um passado em potência, ele é o momento da escolha e da ação”. Gostaria que a minha vida não fosse este suceder-se de momentos repletos de potencialidades sonhadoras. Tudo me obriga a escolher e a agir. Nesta circunstância da minha vida, onde sou acolhido no seio da Academia Portuguesa de História, constituída por pessoas de inteligência invulgar e manifesta nas obras que publicam, escolha que veio ao meu encontro de um modo totalmente inesperado e imerecido, gostaria que significasse um sério compromisso para decidir e particularmente agir pela promoção do nosso património, promovendo, por ele, um maior conhecimento histórico, não só de âmbito académico mas essencialmente querido e procurado pelo nosso povo. Promover significa conhecer e dar a conhecer, sabendo que são poucos aqueles que se interessam pelas riquezas da nossa história e levando a que este desconhecimento conduza a muitas decisões e atitudes que estão a trair a nossa verdadeira identidade. Recordo o que Sören Kierkegard afirma: “A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para o futuro”. Olhando para a história do Bom Jesus, quero dar o meu contributo para que o futuro de um local carregado de ampla história possa ser diferente. Com este compromisso quero agradecer a distinção que me foi concedida. As palavras valem pouco, mas a certeza de que procurarei trabalhar com os olhos na história que alicerça as minha opções, pode manifestar-vos quanto estou grato a esta Academia.

I - As origens

O período após o Concílio de Trento fez brotar os montes sacros espalhados pelas colinas do Piemonte e Lombardia, onde é marcante a influência de S. Carlos Borromeo, amigo do Beato Bartolomeu dos Mártires com quem teve uma comunhão espiritual muito séria e, sobretudo, partilhou um compromisso de luta e prossecução dos objetivos traçados pelo Concílio de Trento para a consequente Reforma Católica. Monte Sacros estes que foram reconhecidos, em 2003, Património Mundial da Humanidade pela UNESCO: No Piemonte (Belmonte, Crea, Domodossola, Griffa, Oropa, Orta e Varallo Sesia), na Lombardia (Ossuccio e Varese). 

Também os montes sacros portugueses, instrumentos para a implementação de um programa de catequese sistemática, se inspiram nas ordenações tridentinas e se enquadram, perfeitamente, na ideia de peregrinação, onde não podem faltar elementos inspiradores: um caminho devocional ao longo das encostas de uma colina, um ambiente tranquilo e isolado, uma presença de estruturas, uma qualidade monumental, através de capelas e fontanários, cobertos com esculturas ou pinturas de arte altamente expressiva, com cenas que evocam a via-sacra e os diferentes momentos da paixão de Cristo. Também existem outros dedicados a Maria onde os momentos bíblicos da sua vida são representados, em capelas variadas e de um modo expressivo em diversas formas de arte desde a pintura à escultura. 

Daí que os chamados “Sacri Monti” sejam um complexo de índole religiosa, uma estância cativante e paradisíaca, um local de fé, uma obra de arte em diálogo com a paisagem e a natureza envolvente, com o objetivo de criar um lugar sagrado que fosse uma alternativa a Jerusalém e à Palestina, um espaço onde se reúnem todas as componentes da “via-crucis”, fazendo dele um centro irradiador de fé. Sabemos que a Idade Média e períodos subsequentes estava marcada pela ideia da Peregrinação a Jerusalém, como expressão de conversão de hábitos e comportamentos ou como forma ascética de vivenciar a santidade. A impossibilidade de chegar a Jerusalém, por razões de saúde ou de ordem económica, eram substituídas pela passagem por estes locais que, na sua arte, expressavam uma quase identidade com a Terra Santa.

O conjunto monumental do Bom Jesus do Monte, ex-libris da cidade de Braga, é, com certeza, o mais majestoso, o mais simbólico e o mais poético sacro-monte construído na Europa, onde predomina a arquitetura religiosa, barroca, rococó e neoclássica. 

Desde que a presença humana se fez sentir na colina sagrada do Bom Jesus, a partir do século XIV, se notou a presença dos romeiros movendo-se a pé, pelo elevador ou com precários meios de transporte, tornando esta estância barroca como uma das maiores rotas sagradas, pelo seu valor penitencial, ritual de purificação, romaria, tradição popular, lazer e repouso.

Tal como no reino messiânico (Livro de Isaías), onde os animais coabitam pacificamente, também no Bom Jesus do Monte a alma revê-se na pedra edificada, o sacro dá as mãos ao profano, o antigo convive com o contemporâneo, a paixão de Cristo vê-se paredes-meias com o escadório, a proteção da natureza procura a compatibilização com o espiritual, o ambiental e o turismo. 

O Bom Jesus, referência incontornável da arte barroca em Portugal, apresenta-se revestido de originalidade, proporcionando um autêntico espetáculo visual. O Barroco, mais que um estilo, é um tempo de festa, encantamento, magnificente, eloquente, um itinerário cenográfico, catequético e de sonho, usando até aos limites os sentidos.

Nasce a partir de uma montanha e, posteriormente, se envolve num conjunto de espaços e estruturas que pretendem facilitar os sentimentos que os peregrinos de diversos outros lugares sentiam e experimentavam. Como tantos outros, desde sempre, e na sua génese, o Bom Jesus se apresentou como um santuário de peregrinação, tornando-se no séc. XIX o maior centro de peregrinação em Portugal. O Bom Jesus do Monte, a “Nova Jerusalém”, o lugar da “Cruz” e da Paixão de Cristo.

Sabemos que a tradição secular da peregrinação, como testemunho de fé, está presente na história das religiões, em muitas culturas (hindu, judaica, muçulmana, cristã), em muitos destinos de peregrinação (Jerusalém, Roma, Santiago de Compostela, Bom Jesus do Monte).

É imbuído neste espírito que os “Sacri Monti”, depois de Itália, se espalham por outras áreas da Europa, Portugal, Suíça, Áustria, Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Checoslováquia e casos esporádicos na Hungria, Turquia, Rússia e Jugoslávia. A montanha sagrada do Bom Jesus do Monte, em Braga, cujas raízes remontam ao século XIV, desenvolve-se a partir dos finais da Idade Média, quando emergem os primeiros movimentos de peregrinação, devoção e culto, evocando a “Nova Jerusalém”.

Alguns elementos históricos

Machado de Vasconcelos refere uns estatutos, redigidos em 1373 (aprovados em 1378), de uma confraria sediada em Braga - Confraria da Trindade. Neles se “ordenava” que, para exaltação da Santa Cruz de Jesus Cristo, “por dia de S. Joane do mes de Mayo de cada anno” (S. João Evangelista - dito da Porta Latina – celebrado a 6 de Maio), se fizesse procissão à Ermida de Santa Cruz do Monte. Quer dizer: todos os anos os confrades e, certo, mais povo que os acompanhava, subiam em romagem e procissão de Braga à Santa Cruz do Monte! Outra nota importante: consagrava-se por escrito uma prática já antiga, pois dizia-se, igualmente, nesses mesmos estatutos, que era costume assim fazerem seus pais e avós havia já uns trinta ou quarenta anos! Estas notas são de decisiva importância para a História da Santa Cruz - hoje Bom Jesus do Monte. Assim o vemos “agora” também referido no trabalho de Alberto Feio, datado de 1930, tomando esse testemunho de José Machado como seguro. Tudo supõe a existência de uma pequena ermida que existindo antes de 1373 se supõe que já em 1341-42 fosse local de peregrinação e devoção, promovidas por uma Confraria, entretanto ereta.  

O arcebispo Dom Rodrigo da Cunha atribuiu ao arcebispo D. Jorge da Costa II a construção, em 1494, de outra ermida de reduzidas dimensões, no mesmo local, e que teremos de aceitar como uma segunda ermida. Três décadas depois, em 1522, o deão bracarense D. João da Guarda, em virtude da anterior já não comportar os devotos, mandou reedificá-la e ampliá-la a expensas suas, em cantaria lavrada ao gosto da época, um gótico peninsular, como provam alguns vestígios que chegaram até nós.

Corria o ano de 1629 quando um punhado de devotos bracarenses pensaram na fundação de uma confraria, sob a invocação do Bom Jesus do Monte, para reacenderem a extinta devoção à Santa Cruz. É a partir desta data que a encosta ocidental do Monte de Espinho se transforma no Monte Calvário, encastoado na montanha a leste da cidade de Braga, e se instituiu uma confraria “debaixo da glorioza invocação do mesmo dulcíssimo nome do Bom Jesus. Seus confrades com esmolas dos devotos, lucros dos bailes e Passos da Sagrada Escritura com atividades que se faziam em obséquio do Santíssimo Sacramento, fizeram quartéis e fundaram pequenitas Capelas dos Passos da Santíssima Paixão de Jesus Cristo, que eram somente nichos muito pequenos, nem mais figuras lhe cabiam pela pequenez das mesmas capelas”. Nota-se, aqui, a ideia dos “Sacri Monti” em escala ainda muito reduzida, mas que se torna expressiva e simbólica sobretudo testemunhando a procura dos devotos que aí se deslocavam em atitude penitencial e de devoção.

Em 1720, Dom Rodrigo de Moura Telles, “o restaurador do Bom Jesus”, vendo o estado lamentável a que tinha chegado o templo devido ao quase abandono causado pela administração do Deão Francisco Pereira da Silva, nomeia-se Juiz da Confraria e inicia um processo de reabilitação total da estância: constrói um novo templo no Largo do Pelicano com forma elítica; delineou os escadórios iniciando-os pelo pórtico; as Capelas da Via-Sacra; os Escadórios dos Cinco Sentidos. 

Dom Gaspar de Bragança, em 1773, a pedido da Mesa do Bom Jesus, conseguiu, junto do Papa Clemente XIV, que fossem concedidas graças espirituais, com que a Igreja costuma beneficiar os romeiros que visitavam os lugares consagrados pela piedade cristã. No mesmo ano, o Papa expedia três Breves, concedendo aos peregrinos e romeiros do Bom Jesus um Jubileu, com graças e privilégios.

Com a afluência extraordinária de devotos, de esmolas e de doações, o templo de reduzidas dimensões, construído em tempo de D. Rodrigo de Moura Teles, tornara-se, agora, acanhado, não respondendo ao elevado concurso de gente. Projetou-se, então, uma nova construção, não só pelas razões expostas, como também porque a existente ameaçava ruína. O plano seria assumido pelo arquiteto Carlos Amarante, personalidade de renome que deixou a sua marca em muitos edifícios que caracterizam a cidade de Braga, homem da confiança e da corte do Arcebispo de Braga, D. Gaspar de Bragança. A primeira pedra seria colocada no dia 1 de junho de 1784, coincidindo com a tradicional festividade e romaria do Espírito Santo. A devoção ao Espírito Santo ficou sempre ligada a este espaço. Trata-se de um dado muito curioso atendendo a que, infelizmente, é uma devoção com insignificante presença na Arquidiocese. A partir desta data, o Santuário foi ampliando os seus espaços onde, para além de outros elementos carregados de grande sentido místico e ascético, emergem as 19 capelas onde os diversos passos da paixão do Senhor são representados de um modo icónico muito rico e interpelativo.

O conceito de santuário está ligado ao templo e/ou à sacralidade do lugar como “ponto de confluência de peregrinações”, local devotado genericamente ao culto das relíquias, à veneração da iconografia de santos ou de dedicação mariana ou cristológica (Penteado, 2000). E é neste último sentido que enquadramos a tipologia do santuário do Bom Jesus do Monte, numa matriz de santuário de relíquias e um dos mais representativos santuários cristológicos portugueses. Se não é fácil, porém, aludir à narrativa sobre as origens do sítio enquanto local de peregrinação, mormente por ter raízes temporais muito antigas, mais fácil se torna encontrar as provas documentais quanto se tenta demonstrar a sacralidade do lugar e a escolha de que terá sido alvo por parte da divindade para se revelar aos fiéis a quem deveria dispensar auxílio material e espiritual. Merece uma ênfase particular esta aliança como elemento marcante das origens e prova que a religião nunca se alienou em comportamentos estritamente espirituais. Estes não existem se não se alicerçam na materialidade da vida e esta resplandece quando não se restringe ao imediatismo das circunstâncias e ao apego sensível a realidades visíveis e palpáveis. O Bom Jesus do Monte cresceu em importância ao longo dos séculos XVII e XVIII, coincidindo com o surto de santuários cristocêntricos que acompanharam em Portugal a devoção popular ao crucifixo. Em regra fora das localidades, estes sítios tornaram-se polos de intenso fervor religioso, nomeadamente por altura das celebrações da Paixão que, no caso do Bom Jesus, se refletiu num intenso número de visitantes. Desta forma, após 1721, foram introduzidas várias capelas com cenas da Paixão, fontes e escadórios, terreiro, pórtico, tudo acompanhado pela construção de uma igreja principal, cujas obras se alongaram durante os anos oitocentos. Concluindo, o esforço que levou ao êxito deste santuário de via-sacra muito se deve ao empenho de vários prelados, com especial destaque para D. Rodrigo Moura Telles. Os espaços foram-se ampliando e em simultâneo com elementos carregados de profunda ascese e mística, tendo surgido 19 capelas onde os diversos passos da paixão do Senhor são representados de um modo iconográfico de denso significado e impressionante interpelação para a compreensão dos mistérios da morte de Cristo.

II – Do Santuário à Vilegiatura

Ao longo do século XIX, mormente na sua segunda metade, o santuário passou a cruzar a valência de local de peregrinação com o de vilegiatura. A meados de oitocentos, começa a despontar entre as classes mais abastadas a noção de viagem associada ao restabelecimento do corpo. Foi-se sedimentando a ideia de associação do meio ambiente à saúde e ao lazer, que colheu o apoio inequívoco das classes médicas que passaram a significar a vilegiatura como uma atividade igualmente higiénica (Teixeira, 1926).

Ora, com a crescente frequência do Monte por romeiros, especialmente em dias santos e aos domingos, a Confraria do Bom Jesus passou a diligenciar as suas “Casas”, consignadas a comerciantes que aí vendiam “pão, vinho e palha para as bestas” (Capela, 1992: 96). A par disto, a Confraria foi também dinamizando a criação de quartéis e alpendres para os peregrinos “pernoitarem e locais para recolherem os carros e animais” (Peixoto, 2011: 177). Já nos finais do século XVIII, como se pode confirmar documentalmente no Arquivo Histórico da Confraria, existiam várias hospedarias para o acolhimento dos peregrinos “que não iam prevenidos do necessário para poderem habitar, e subsistir nos quartéis”. O mesmo se foi verificando pelo século XIX adentro.  

Progressivamente, o Monte foi representando o desejo sazonal de purificação, no sentido de afastamento da rotina urbana e assumido enquanto espaço de entretenimento. Prefigurando o estatuto de estância, o Bom Jesus do Monte vai revelando com muita acuidade um potencial turístico e hoteleiro muito “apetecível” (Peixoto, 2011: 179).

Desde muito cedo, com o avolumar da presença de peregrinos e romeiros, começaram a disponibilizar-se estruturas de acolhimento que, numa fase mais recuada no tempo, eram conhecidas por “quartéis”, “casas da Confraria”, “albergues” ou tão-só “alpendres”, núcleos de apoio ao peregrino que já existiam no século XVIII. Progressivamente, a designação e a qualidade das infra-estruturas foi evoluindo, passando pelo figurino de estalagem, hospedaria e pousada até ao surgimento dos hotéis. Já no Guia do viajante, de Azevedo Coutinho, se refere o Bom Jesus do Monte como ponto de atração pela dupla vertente, religiosa e pitoresca, chamando a si “devotos e touristes” (Coutinho, 1905). Em 1930, Alberto Feio caracterizava assim o Bom Jesus: “Santuário de milagres e milagre da natureza, estância das mais belas de Portugal” (Feio, 1930).

Um bom exemplo da associação do Sítio à ideia de vilegiatura é também a construção do célebre Chalet dos Benfeitores, uma tipologia construtiva inicialmente associada a cenários românticos e bucólicos numa envolvente rural e montanhosa, mas que passaram a ser usadas, amiúde, como estruturas hoteleiras em locais de lazer e veraneio. Esta estrutura foi construída ao longo do último quartel do século XIX e veio a funcionar já nas primeiras décadas do século XX como suporte ao hotel do Parque (Peixoto, 2011) e ilustra o interesse pelas dinâmicas vilegiaturista plasmadas nas várias propostas apresentadas à Confraria para a construção e, mais tarde, também para a exploração de unidades hoteleiras. 

Nesse período, um dos principais condicionalismos ao desenvolvimento do turismo em Portugal residia na falta e na má qualidade dos hotéis. Raúl Proença, no seu Guia de Portugal, traça um retrato do país turístico afirmando que fora das “estâncias termais e balneares e de duas ou três estâncias de vilegiatura ninguém frequenta hotéis portugueses senão por absoluta necessidade, tal é o desconforto e a falta de asseio da maioria deles”. No Bom Jesus pretendia-se a construção de estruturas diferentes.

Em 1905 tinha sido publicado um primeiro projeto de lei que consignava alguns incentivos fiscais às empresas que se propusessem a novos empreendimentos hoteleiros, embora com parcos resultados. Em 1914, já em plena Primeira República, e com a Repartição de Turismo a funcionar (Gonçalves, 2011) e, naturalmente, com a influência organizativa da Sociedade Propaganda de Portugal, agiliza-se a aprovação de um novo diploma em que estabelece largas “vantagens fiscais” para os hotéis a construir ou remodelar. É ao abrigo deste regime jurídico, em vigor de 1914 a 1934, que se enquadra e de que beneficia, nesse tempo, a evolução do parque hoteleiro do Bom Jesus do Monte. Aparece a sociedade anónima “Hotéis Portugueses de Turismo”, constituída em 1919 com capitais do Banco do Minho, mas também por particulares como Ernesto de Vilhena, Gomes e Matos ou Estalano Dias Ribeiro.

O mais significativo é o Hotel Elevador que conheceu várias transformações e designações – “Grande Hotel”, “Hotel da Boavista” e “Hotel Higiénico”. De estalagem para peregrinos a estância de vilegiatura, esta unidade hoteleira recebeu figuras ilustres em períodos de veraneio, desde a família real portuguesa ao grande novelista Camilo Castelo Branco. Dos vários concessionários do hotel, destacasse o empresário bracarense Manuel Joaquim Gomes que vai proceder à eletrificação da instância e a outros melhoramentos tecnológicos. O Hotel do Elevador foi o primeiro edifício em Braga a ser eletrificado, a ter telefone e a ter um sistema de água canalizada nos quartos. Tal como esta unidade, as restantes passaram também por sucessivas remodelações e adaptações às circunstâncias dos tempos, cuja gestão passou ainda, no início da década de 80 do séc. XX, pelo Grupo SOPETE antes de ser tomada definitivamente pela Sociedade de Hotéis do Bom Jesus (SHBJ), a partir de 1988.

Com a criação da SHBJ, a Confraria passa a ter um papel decisivo na gestão do parque hoteleiro do Bom Jesus. Atualmente a maioria das ações são detidas pela Arquidiocese de Braga e pela Confraria do Bom Jesus, que gerem um conjunto de quatro hotéis no Bom Jesus, três de quatro estrelas - Hotel Elevador, Hotel do Parque, Hotel do Templo e, um de três estrelas  – Hotel   do Lago e por um centro de convívio, de reuniões e de congressos, A Colunata de Eventos. 

No total, a estância do Bom Jesus dispõe de 161 quartos, representando cerca de 20% dos quartos de estabelecimentos hoteleiros em Braga.

Hoje visitado por cerca de um milhão de pessoas/ano, o BJM é referência para peregrinos, turistas e visitantes de todo o mundo. E cedo se tornou num ícone turístico não só da cidade, mas de toda a região Norte e mesmo do País. Trata-se de um local de relevância mundial para o turismo pois oferece variadíssimos elementos de conteúdo artístico de grande valor patrimonial que se tornam um exemplar ímpar da arquitetura barroca. A imagem do Bom Jesus com os seus escadórios é, talvez, a principal imagem de marca de Braga. Aparece reproduzida num sem número de publicações, podendo mesmo servir de capa em livros de edições internacionais, como o livro The grand tour. Volta ao mundo pelos olhos de um arquitecto, de Harry Seidler. 

O Bom Jesus surge como um dos locais mais referidos na programação turística para o Norte de Portugal. Aliás, a análise da programação de Operadores Turísticos e da deslocação de turistas individuais demonstra que é usual incluir o Bom Jesus nos principais itinerários turísticos que percorrem Portugal e Espanha, nomeadamente os que ligam Fátima a Santiago de Compostela, integrando os grandes circuitos turístico-culturais europeus. 

III - Uma nota sobre o Elevador e as acessibilidades

Manuel Joaquim Gomes (1840-1894), empresário de visão futurista e espírito vanguardista, foi uma figura decisiva no estimular da procura turística no Bom Jesus. Como vimos atrás, foi concecionário do Hotel do Elevador e principal impulsionador da construção do Elevador propriamente dito. 

A localização do Bom Jesus, no alto de um monte, com um enquadramento natural exuberante, transforma-o num dos mais belos sacro-montes da Europa. Mas o acesso ao local sempre foi dificultado pela sua localização. Ao longo dos últimos três séculos a Confraria encetou várias obras para melhorar os acessos ao Santuário e para facilitar a viagem aos visitantes. 

Mas, já no século XIX, a procura turística levou a que fosse proposto na Câmara Municipal de Braga (1872) a construção de uma linha do Americano da estação de caminhos-de-ferro em direção ao Bom Jesus do Monte, a funcionar já em 1877 (Peixoto, 2012), com o célebre elétrico que atravessava toda a cidade. Faltava criar condições de acesso ao Santuário a partir do Pórtico para as pessoas incapacitadas de percorrer o itinerário religioso com as diversas Capelas e Escadório. Mas, do pórtico ao Santuário ainda era necessário vencer o plano inclinado. 

Perspetivando um aumento significativo de visitantes, Manuel Joaquim Gomes aposta num investimento notável que propõe à Confraria em 1880: a construção de um funicular. Inaugurado em 25 de Março de 1882, foi o primeiro funicular construído na Península Ibérica. Neste momento é o ascensor mais antigo do mundo, em funcionamento, a utilizar o sistema de contrapeso de água. 

A construção do Elevador do Bom Jesus do Monte insere-se numa estratégia de ir ao encontro do melhoramento dos acessos, num objetivo mais amplo de valorização e exploração económica da estância. Esta infraestrutura de transporte permitia, já no século XIX, disponibilizar ao visitante um sistema de transportes integrado, entre a estação de caminhos-de-ferro de Braga e o Bom Jesus. A Confraria continua a manter este meio de transporte como um museu vivo, mas que transporta mais de 300 mil pessoas/ano, com as mesmas características de funcionamento de há 133 anos. Com um elevado número de locais para estacionamento automóvel, continua-se a publicitar o uso deste meio como uma alternativa que favorece o ambiente e que deveria ser mais conhecida e usada por portugueses e estrangeiros.

IV - Centro de exposições e palco de eventos

A Confraria, em reunião de mesa de 13 de Janeiro e de 2 de Março de 2010, decidiu criar um espaço dedicado ao Museu e nele integrar um Centro de Exposições e atribuir, por unanimidade, o nome de Centro de Exposições Cónego Cândido Pedrosa, que foi inaugurado no Dia da Invenção da Santa Cruz, que no calendário litúrgico se celebra a 3 de Maio. 

Com a criação deste Centro de Exposições, a Confraria do Bom Jesus do Monte pretende, através da dinamização cultural, atrair mais visitantes e peregrinos a este espaço sagrado. Este centro está vocacionado para exposições temporárias de todos as áreas artísticas. Nunca se faz o suficiente quando se trata de fazer usufruir o património. Mas, em nome da verdade, este Centro de Exposições tem organizado um conjunto de iniciativas que deram a conhecer o património móvel da Confraria e concederam a oportunidade para que artistas portugueses, das mais variadas vertentes, colocassem ao serviço da comunidade os seus talentos artísticos.

Sempre motivada pela dinâmica cultural que delineou e concretizou o espaço do Bom Jesus, está nos planos da Confraria a concretização de um Centro Interpretativo onde a história do Bom Jesus se transforme numa experiência de responsabilidade coletiva para a preservação de todo o património permitindo uma fruição pública para crentes e não crentes. 

V – Colunata de Eventos

Não ficaria completa esta síntese sem referir um espaço, situado num local de paisagem deslumbrante, adaptado para proporcionar um encontro da cidade e país com a cultura. Trata-se da denominada, depois de ter passado por diversos nomes, colunata de Eventos. É um espaço multifuncional, desde o uso como restaurante ao acolhimento de conferências. Aí já aconteceram congressos a abordar todas as temáticas e a permitir locais para as refeições e comunicações, assim como o espaço verde retemperador e reconfortante. É uma estrutura aberta ao futuro, talvez ainda não suficientemente conhecida, mas que continuará a permitir que o Bom Jesus alie experiências de índole integralmente humanas como a originalidade dos “Sacri Monti” onde os peregrinos procuravam a serenidade com a permanência de vários dias dedicados à oração, ao convívio, ao encontro de gerações e à formação que lhes era oferecida. Eles não eram meros lugares de peregrinação – visita apressada – mas oferta de condições para a reflexão serena e prolongada. Não era suficiente visitar o santuário. Ficava-se e aproveitava-se o tempo para o sagrado, assim como para um intercâmbio humano. Há aqui muito de antecipação dos tempos de que teremos de extrair lições para aproveitar estes sítios históricos. Nunca permitiremos que o Santuário seja sacrificado à estância. Queremos, porém, comprometermo-nos na construção de um espaço acolhedor de todas as culturas e sensibilidades. O santuário propõe, respeitando a liberdade religiosa, mas acolhe a sociedade pluricultural de hoje.

VI - Candidato a património Mundial da Humanidade 

O valor deste Santuário é agora alvo de um processo de candidatura a inscrição na “Lista de Património Mundial da UNESCO” como “Paisagem Cultural”. A candidatura foi entregue no Comité Internacional da UNESCO, em Paris, no dia 30 de Janeiro de 2018. 

O processo consubstanciado em argumentação que pretende demonstrar o seu inequívoco “valor excecional” por responder a alguns dos principais critérios para a avaliação dessa excecionalidade. Enumeremos alguns: este processo incidiu no sublinhar da “integridade e autenticidade do bem”, assim como pela sua forma e conceção que apesar da natural diversidade estética de cada tempo é apresentado como uma “peça harmónica”. Do mesmo modo, assinala-se a sua estrutura formal, quer o seu monumental escadório barroco, quer a sua nova igreja, a que se associa uma densa narrativa religiosa, sendo que o processo não deixa de sublinhar a existência de um qualificado e bem enquadrado parque hoteleiro e um secular elevador de montanha. 

Também não se esqueça critérios de caráter estrutural, constituídos pelos elementos construídos que definem a composição geral: os muros de suporte e de compartimentação, as escadas, distribuídas por vários lances intercalados por patamares e pátios/miradouros, e o sistema hidráulico que, embora não visível, sustenta o complexo sistema de fontes. As capelas dispõem-se ao longo de todo o percurso sagrado enquanto a Basílica, dignidade concedida pela Santa Sé em 2015 como reconhecimento do valor patrimonial e religioso (que veio dar à Candidatura um grande apoio), tem uma posição e função hierárquica superior. Os atributos materiais de caráter ornamental - fontes e estatuária, em particular - têm uma importante dimensão simbólica e conferem escala e movimento, ao mesmo tempo que atribuem significado, sendo determinantes na compreensão da narrativa do lugar.

Com todos estes critérios, devidamente elaborados, esperamos que a candidatura seja conduzida a bom porto, proporcionando a atribuição da categoria de Património Mundial da Humanidade. Com ele, o Bom Jesus será enriquecido e a cidade de Braga e o país usufruirá de vantagens de diversa ordem.

Conclusão

O Santuário do Bom Jesus do Monte configura uma síntese e uma consumação de um projeto europeu de criação de montes sacros, atingindo uma complexidade formal e simbólica única e um caráter monumental sem precedentes. Materializa-se, essencialmente, através de uma extensa, completa e complexa via-crucis, onde se harmonizam elementos de forte simbologia. 

A localização do santuário num monte, indissociável da cidade e da Arquidiocese de Braga e numa relação harmoniosa com a natureza, constituiu um dos atributos de maior significado do lugar. Na realidade, trata-se de um exemplo notável de sacralização da paisagem num projeto que tira partido dos elementos naturais presentes (relevo, vegetação, rochas, disponibilidade de água, sistema de vistas) para a implementação de um programa religioso, lugar-recriação de Jerusalém. 

A sua evolução ao longo de vários séculos permitiu a integração continuada de elementos, dentro de uma mesma narrativa religiosa, atingindo a sua máxima expressão no período barroco, alcançando um carácter excecional e único dentro desta corrente assim como no contexto dos montes-sacros europeus.   

A sua execução foi possível através de uma extraordinária mobilização de recursos, nomeadamente de esmolas e ofertas, sendo a expressão do esforço, continuado e determinado, de gerações, ao longo de mais de seis séculos. 

De elevada qualidade e solidez construtiva, é um lugar de concentração da expressão artística e técnica e de celebração do granito, esculpido numa “natureza” luxuriante e exemplarmente integrado na paisagem.

A Confraria do Bom Jesus é a entidade responsável pela gestão do património e do culto no monumento. A gestão é feita de forma ecuménica, pois concilia-se uma gestão do monumento enquanto simultaneamente espaço religioso e espaço cultural e de arte. Entende-se que só uma convivência sã entre estas duas realidades permite uma gestão sustentável, sem deterioração dos seus atributos materiais e imateriais.

O Santuário possui um conjunto importante de infraestruturas de apoio aos visitantes e à realização de atividades de vária natureza, permitindo o conhecimento e a divulgação do próprio bem - 4 hotéis, Colunata de Eventos (com 3 salas), 2 restaurantes, 4 bares/esplanadas, Casa das Estampas (loja), Centro de Exposições/Centro de Interpretação Turística, Biblioteca, sanitários públicos, estacionamento organizado para 30 autocarros e 250 automóveis. 

A Confraria, nos últimos anos, tem desenvolvido um conjunto de iniciativas e conteúdos que visam disponibilizar e qualificar a visita ao Bom Jesus - exemplos disso são a criação de uma exposição permanente “Rostos do Bom Jesus”, a criação de um guia turístico de visita em cinco línguas, a criação de um novo website com conteúdos de rigor histórico mas atrativos e interativos, a criação de uma aplicação para smartphones para o visitante poder conhecer o Bom Jesus antes da visita, durante e deixar um contributo quando partir. A criação de uma página de facebook, com atualização permanente tem vindo a angariar um conjunto de seguidores por todo o mundo.  

Tem-se vindo a registar um número cada vez mais significativo de grupos de visitantes estrangeiros por intermédio de operadores internacionais que encontram no Bom Jesus um espaço com ótimas condições de acessibilidade e de visita. São privilegiadas atividades e programas vocacionados para o público escolar através de visitas guiadas ao local e o contacto com as intervenções in loco

O Bom Jesus está integrado na rede de Santuários de Portugal e pretende vir a integrar outras redes internacionais de montes sagrados e sítios classificados.

Em síntese, fonte de inspiração, com destacadas tentativas de repetição em algumas partes do mundo, o Bom Jesus do Monte confirma a sua vocação para elevar a Humanidade à sua sublimidade. Aqui, onde a arte obtém um casamento perfeito com a natureza, a Humanidade atinge a sua plenitude. Aqui, onde a devoção dá lugar, cada vez mais, a um interesse artístico e turístico crescentes, localiza-se um fenómeno inevitável da história de uma gente, um tal estilo à parte que deve consagrar o Bom Jesus como património para toda a Humanidade. 

Historicamente o sacro monte, como polo significativo de arquitetura sacra, passa, sinteticamente, por três fases:

- o tempo das ermidas, desde o século XIV até 1629, onde sobressaem D. Jorge da Costa II e D. João da Guarda;

- o tempo da impregnação da devoção à Santa Cruz, desde 1629 até 1723, onde a constituição da Confraria do Bom Jesus do Monte ganha um papel determinante na definição do rumo da estância;

- o tempo da implementação da “via-crucis”, desde 1723 até à atualidade, em que o Presidente da Confraria, D. Rodrigo de Moura Teles, lança um ousado projeto e inicia a construção da estrutura do complexo atual, o mais monumental sacro monte da Santa Cruz em Portugal, evocativo do caminho doloroso do calvário, traduzido no Pórtico, Escadório, Capelas, Fontanários, Estatuária e Templo. Reconhecendo que foram introduzidos, ao longo do tempo, melhoramentos, reformas e significativas alterações em sintonia com os gostos artísticos do momento, nunca a ideia original se desvirtuou. Pelo contrário. Deu nova ênfase aos elementos caracterizantes deste emblemático local.

Nesta estância somos, inevitavelmente, conduzidos a um patamar que transcende a própria existência, numa dialética dos dois mundos (o natural e o construído) e ficamos cativados pela sua globalidade, pela simbiose entre a “expressão da natureza” e a “intervenção humana”. Falta-nos, apenas, a consagração e a ascensão a Património da Humanidade. O trabalho foi realizado com muito esmero e empenho cultural e histórico. As diversas etapas foram ultrapassadas. A verdade do valor patrimonial acontecerá proximamente. É merecida e a UNESCO saberá reconhecer.

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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