Arquidiocese de Braga -
5 dezembro 2020
Construir a cidade com São Geraldo
Homilia na Solenidade de S. Geraldo, bispo de Braga, Padroeiro da cidade
\n \nA Solenidade de S. Geraldo é uma oportunidade para revermos a história religiosa desta região.
Não sabemos exactamente quando é que o cristianismo chegou às nossas terras. Sabemos que o Império Romano perseguiu os cristãos e que tivemos aqui alguns mártires, nomeadamente S. Victor. Como hierarquia, o primeiro arcebispo verdadeiramente histórico é Paterno, que viveu pelo ano 400. Nessa altura, o cristianismo já estava convenientemente organizado, sobretudo após o édito de Milão, por Constantino em 313, e particularmente por Teodósio em 380, que declara o cristianismo religião oficial do Estado. Braga Romana não foi sempre uma cidade pagã. Já no séc. IV os seus habitantes eram cristãos.
Com a queda do Império Romano, em 476, e com a invasão dos chamados povos bárbaros ou indogermânicos, a Arquidiocese preocupou-se com a sua evangelização. Entre outros povos recordamos os suevos, evangelizados sobretudo por S. Martinho de Dume e os Visigodos por S. Frutuoso. Foi diferente o que aconteceu com a invasão dos povos muçulmanos ou mouros que, onde chegavam, destruíam todos os sinais religiosos que recordassem o cristianismo para os substituir por outros a vincular a religião que professavam. Temos disto testemunhos arqueológicos na Sé Catedral, onde sobre o templo pagão foi construída uma catedral católica para depois ser destruída e aí erigido um templo muçulmano.
O domínio dos árabes nunca tranquilizou os católicos. Surgiram lutas para reconquistar os espaços, com resultados positivos no séc. IX. Este espírito de voltar ao cristianismo foi protagonizado por muitos guerreiros vindos de vários lugares da Espanha e particularmente da Borgonha. Daí que, quando Braga foi reconquistada, o arcebispo deixou Lugo para aqui exercer o seu ministério. Recordamos uma aliança construtiva entre o Conde D. Henrique, D. Teresa, D. Afonso Henriques e o Bispo D. Pedro.
A primeira preocupação que este teve foi construir a catedral situada no lugar onde existiu a primitiva e aí vieram a ser sepultados o Conde D. Henrique e D. Teresa, como fundadores de Portugal. A fé cristã motivou a reconquista e Portugal nasceu fruto desta aliança entre os dois poderes.
Depois de D. Pedro veio S. Geraldo. Não foi, apenas, o arcebispo do milagre da fruta. Continuou a construção da catedral e procurou reconstruir a cidade que havia sido destruída pelos muçulmanos. Aqui começa um novo período de Braga onde a Igreja ocupa o lugar que muitos, hoje, gostariam que fosse dos reis mas não foi. Com a reconstrução da cidade, procurou consolidar o título de Arcebispo, Metropolita, para ter jurisdição perante os bispos das dioceses limítrofes. Mais ainda, este trabalho de construção da cidade veio a merecer, um pouco mais tarde, o senhorio, ou seja, a partir daí, do longínquo séc. XI, era senhor de Braga. Também o título de Primaz das Espanhas remonta a esta época. Braga tinha, assim, um arcebispo (presidente desta metrópole eclesiástica que aglomerava diversas dioceses) que era senhor de Braga pelo governo civil desta região e Primaz das Espanhas que lhe granjeava autoridade no confronto com todos os bispos da Península Ibérica. Em finais do séc. XIX, perdeu o título de senhor mas durante oito séculos coexistiram os dois poderes na sua pessoa.
Hoje os tempos são diferentes e não queremos que os anteriores regressem. Basta-nos a dimensão espiritual e sentimo-nos mais perto daquilo que Cristo queria para a sua Igreja. Preocupamo-nos com o Evangelho. Queremos, porém, dentro daquilo que nos é específico, continuar a dar um contributo para a construção da cidade e da sociedade civil. O ser humano não é mera materialidade e a transcendência integra as suas exigências fundamentais. Gastaríamos de ser capazes de, com o Evangelho e mais nada, ser fermento e luz numa sociedade que é humana quando se abre a valores que ultrapassam o espaço do natural.
E como nos poderemos situar neste tempo que sabemos ser diferente? O Papa Francisco deixou-nos um texto orientador para o nosso trabalho eclesial. Dirigiu-o à COMECE, ou seja, Comissão dos Bispos Católicos junto do Parlamento Europeu, de que fui representante de Portugal durante três anos.
“Sonho uma Europa saudavelmente laica, onde Deus e César apareçam distintos, mas não contrapostos. Uma terra aberta à transcendência, onde a pessoa crente se sinta livre para professar publicamente a fé e propor o seu ponto de vista à sociedade.
Acabaram-se os tempos de confessionalismo, mas também – assim o esperamos – de um certo laicismo que fecha as portas aos outros e sobretudo a Deus, pois é evidente que uma cultura ou um sistema político que não respeite a abertura à transcendência, não respeita adequadamente a pessoa humana.
Os cristãos têm, atualmente, uma grande responsabilidade: como o fermento na massa, são chamados a despertar a consciência da Europa para animar processos que gerem novos dinamismos na sociedade.
Por isso, exorto-os a empenhar-se corajosa e decididamente, prestando a sua contribuição em todos os âmbitos onde vivem e trabalham.”
Retiro daqui três orientações claras.
– Queremos e aceitamos a laicidade, ou seja, uma distinção de poderes que não se contrapõem mas colaboram juntos, no respeito pela sua especificidade, para bem do mesmo povo;
– Não aceitamos o laicismo que muitos pretendem impor. A nossa sociedade não é pagã. Está marcada por uma cultura cristã, por muito que alguém afirme que o convívio entre o cristianismo e o culto pagão é a marca identitária da nossa cidade. Não o podemos aceitar.
– Esperamos que os nossos cristãos se comprometam na construção desta cidade dos Homens onde os valores intemporais são para todos os tempos. É de esperar que os cristãos sejam capazes de agir nos diversos ambientes, políticos e profissionais com esta responsabilidade.
Na Solenidade do padroeiro da cidade de Braga, S. Geraldo, sinto o dever de assumir um papel de intervenção positiva na história da nossa cidade, a Romana Portuguesa, a cidade dos Arcebispos. A título de exemplo, não posso concordar que tenham colocado a Arquidiocese fora do projecto de Braga Capital Europeia da Cultura. Creio que a Arquidiocese fez cultura durante séculos e que hoje continua a fazer. Até a representante do júri internacional para a selecção das cidades europeias afirmou que era imperioso envolver todas as entidades comprometidas nesta aventura cultural. Alguém também afirmou a identidade de Braga com as raízes da Europa e os seus princípios fundacionais.
A história de Braga é uma história marcada pela fé. Por muito que alguns queiram o contrário, o nosso património material e cultural não é um museu. A fé vai continuar viva e os nossos antepassados não permitem que o paganismo seja a nossa marca identitária.
Neste dia de S. Geraldo, invoco a sua protecção para que a Arquidiocese de Braga não se feche nos seus templos mas, a partir da fé, aí celebrada, exerça uma intervenção positiva a todos os níveis. É hora de continuarmos, de um modo muito particular, a olhar para o social. Queremos uma sociedade mais justa e mais igual. Neste tempo de Advento, queremos dar maior consistência ao nosso Fundo Arquidiocesano de Solidariedade, Partilhar com Esperança. Não fazemos peditórios nas igrejas. Não é tempo para isso, pois conhecemos as dificuldades económicas por que passam as nossas famílias. Iremos dar a conhecer o IBAN desta conta, convictos de que alguma sobriedade nos gastos permitirá uma maior solidariedade com os necessitados. Já fizemos muito pelos pobres. O Fundo já apoiou 1509 casos e 3759 pessoas, tendo gasto 450.352,01 €. Sei que muitas pessoas, famílias, empresas depositarão o seu contributo nesta conta. Isaías na primeira leitura, dizia-nos que somos ungidos e enviados ao encontro dos infelizes, dos corações atribulados, dos cativos, dos prisioneiros, dos aflitos para, sobre todos, derramar o óleo da alegria.
Para além deste Fundo, a Cáritas Arquidiocesana continuará a responder a tantos desafios de cariz social. Merece particular relevo a Casa Abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica que está a ser preparada. A acção social foi o nosso caminho. Continuará a ser uma prioridade.
Que S. Geraldo nos conceda o dom da serenidade para discernimos o que importa fazer, a coragem para ultrapassarmos tanta incompreensão, não digo reconhecimento, pelo trabalho que a Arquidiocese continua a realizar. Procuraremos aceitar todos os desafios culturais e sociais que esta hora conturbada nos está a lançar. Neste tempo de preparação do Natal irei recordar, muitas vezes, que queremos caminhar juntos com todos. É um propósito a dizer também que vamos sonhar juntos um mundo melhor.
Com S. Geraldo seremos capazes de o fazer.
† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
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HomiliaSaoGeraldo2020.pdf
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