Arquidiocese de Braga -
13 junho 2021
Oferecer o pão como Santo António

Homilia na Festa de Santo António
\n \nA tradição da entrega do pão de Santo António foi interrompida o ano passado. A pandemia não permite, também, que aconteça este ano. Fazemo-lo de um modo simbólico. Regressaremos, se Deus quiser, nos próximos anos.
Mesmo assim é oportuno reconhecer o verdadeiro significado desta tradição. Nada melhor do que recorrer às suas origens. Dizem as crónicas que Santo António se impressionava com o grau de pobreza, ficando mesmo incomodado quando a presenciava. Um dia distribuiu os pães do convento em que vivia. O frade padeiro quando se apercebeu que não tinha pão para a refeição dos confrades foi contar o sucedido a Santo António. Este disse-lhe que regressasse ao lugar onde habitualmente colocava o pão. O frade padeiro regressou estupefacto e cheio de alegria. Os cestos transbordavam de pão suficiente para alimentar os frades mas também para distribuir pelos pobres que visitavam o convento. A partir desse momento espalhou-se o costume de colocar nas igrejas franciscanas uma caixa para o “pão dos pobres”.
Estamos habituados a receber o pão de Santo António conservando-o, muitas vezes, em nossas casas durante muito tempo. Não o recebendo este ano, teremos de pensar no dever de o oferecer. Temos um Programa Pastoral que nos convida a viver intensamente a caridade. A ideia do pão a oferecer pode ser paradigmática. Neste ano, que está a terminar, quisemos olhar para a realidade que nos circunda para nos apercebermos dos reais problemas e dificuldades. Talvez não o tenhamos conseguido de um modo cabal. Continuaremos. O próximo ano, a começar brevemente, irá colocar-nos na responsabilidade de promovermos uma cultura do cuidado, fazendo com que do amor nasçam gestos. A palavra gestos será palavra de ordem para um ano pastoral que se aproxima.
A caridade não consiste em bonitos discursos, teorias retóricas que até podem encher as páginas dos jornais. Sem obras concretas nunca mostraremos a validade da fé nem a testemunharemos diante do mundo. Sabemos que todos, consciente ou inconscientemente, nos deixamos mergulhar no egoísmo, comodismo e consumismo. A lei de uma sociedade dita moderna é que importa gozar a vida, olhando para si e os outros que se arranjem. Como católicos, teremos de ir contra corrente e saber que a alegria verdadeira acontece como consequência da generosidade.
Desejamos, ansiosamente, liberta-nos da tirania das restrições impostas pela pandemia. Parece que a vida não é o que deve ser e esperamos regressar à normalidade. Se é o desejo justo, não podemos permitir que este ano e meio não deixe nada de positivo. Sofremos muito. A vida parecia-nos impossível. Importa, porém, que façamos uma retrospectiva de experiências maravilhosas que fizemos ou verificamos. Os profissionais de saúde deram-nos testemunho de abnegada gratuidade. Os sacrifícios foram motivo para colocar os doentes no centro da sua profissão. As forças de segurança mostraram como foram importantes no serviço que prestaram nas situações de emergência. Quem trabalha nas agências funerárias, no dramatismo de mortes sozinhas, mesmo no acompanhar ao cemitério, foram um pouco de consolação na hora de luto. Cada um de nós, penso que é bem verdade, encontrou tempo para si e para ir ao encontro dos outros. Não ignoramos que a realidade actual das vidas está marcada pelo corre-corre sem tempo para nada. Isolados em casa, descobrimos modos de estar juntos de um modo positivo e construtivo. Também para muitos, a religião encontrou um pouco mais de espaço mesmo sem presenças nas igrejas. Saímos de nós e inventamos modos de dialogar, estimular, estar presente. Vimos pessoas com carências de elementos essenciais para viver e encontramos modos de fazer compras para os outros, de partilhar refeições, de chegar a eles com alimentos e medicamentos.
Poderia continuar a elencar estas experiências positivas que a pandemia nos obrigou a fazer. No meio de tudo e com muito sacrifício, vimos que a vida é bela, só que não pode ser interpretada isoladamente. Ouvimos dizer que estamos no mesmo barco e reforçamos a certeza de que sem um amor afectivo e efectivo não podemos viver. Peço a Santo António que nos faça tirar lições deste tempo, que ainda não terminou, e que nos ajude a encontrar o caminho certo para sair dele. Sabemos que a vacinação é a nossa esperança. Só que poderá ter poucos resultados se não tiver aplicação em todos os países. Só uma vacinação universal e gratuita dirá que poderemos continuar a conviver com o vírus que não levará a melhor sobre a nossa responsabilidade social aberta ao mundo inteiro.
Esta reflexão de pensar na vida pós-pandemia, vendo nela uma denúncia de muitos males actuais e a redescoberta de valores constitutivos de um humanismo integral, pode ajudar a dar consistência ao nosso caminhar eclesial como Igreja sinodal, que quer caminhar com todos, particularmente os desfavorecidos e desprotegidos, assumindo-nos samaritanos que se colocam nas estradas da vida para ver, encher-se de compaixão, parar, cuidar com todas as implicações. Não podemos ser só Igreja de templos, sacristias, centros pastorais ou centros sociais. Deveremos ser Igreja das estradas que percorremos atentamente e em atitude de compromisso libertador.
Sempre olhando para o pão de Santo António, recordo que a Igreja, na sua sabedoria, nos apontou gestos concretos na doutrina, aprendida na catequese e que poderá estar esquecida, das obras de misericórdia. Pode parecer que não contemplam todas as problemáticas modernas. Peguemos nelas e veremos como chegamos às feridas que encontramos nas estradas. Dar de comer, dar de beber, vestir os nus. Isto leva-nos a reconhecer que os desequilíbrios sociais agravaram-se durante a pandemia, que as situações familiares estão a exigir um esforço e colaboração colectiva, que importa lutar e comprometer-se numa distribuição justa dos alimentos, proporcionando alimentação para todos e dando concretização à justiça alimentar como marca de uma sociedade que se diz evoluída. Poderemos pensar que já fazemos o possível. Não será urgente prestarmos, por exemplo, atenção ao desperdício? Quantos alimentos deitados fora que poderiam matar a fome de tantas pessoas!.. Há muitas iniciativas interessantes. Muito mais poderá ser feito a partir das nossas comunidades. Promovamos o voluntariado e demos consistência aos nossos grupos de acção social.
O que quererá dizer, hoje, dar pousada aos peregrinos? Quando esta concretização da caridade se expressou desta maneira, a Europa era percorrida por peregrinos que deixavam as suas terras por motivos religiosos. Hoje começamos a presenciar muitos migrantes que deixaram o aconchego das suas terras para fugir à guerra e procurar melhores condições de vida. Que acolhimento estamos a dar aos migrantes e refugiados? Muitos deles, quase todos, são de outra religião e não irão frequentar as nossas igrejas. Não importa. É o próximo-irmão que quer caminhar connosco procurando dignidade de vida. Não deveremos, também, olhar para os ciganos que marginalizamos com muita facilidade não pensando o que poderá ser feito para uma efectiva integração?
O cuidado com os doentes não é tarefa exclusiva do Serviço Nacional de Saúde ou dos familiares directos. Muitos pequenos gestos podem ser inventados. As coisas pequenas ajudam a encarar com fé momentos difíceis que importa abraçar. A doença obriga-nos, necessariamente, a encarar a morte. Outrora enterrar os mortos era verdadeiramente obra de misericórdia. Muitas confrarias nasceram com este objectivo. Hoje, precisamos de ser presença e amparo nessa hora. A pandemia permitiu muita frieza e distância. Não podemos permitir que continue a acontecer. Há regras que não podemos ignorar. Mas teremos de estar presentes. O luto é difícil de fazer e não é só nos momentos dos funerais. Há mais tempo e dor. Sejamos criativos.
Visitar os presos poderá parecer ter uma aplicação residual. Acreditemos que são muitas as cadeias que aprisionam pessoas das nossas comunidades. Para todos a libertação pode acontecer quando alguém se aproxima, escuta, se identifica com o problema e, sobretudo, dá uma mão para sair de muitos precipícios. Elenquemos as prisões sem muros que existem e cheguemos lá.
A fome, a sede, a nudez, os migrantes, os presos, os enfermos, os mortos. Lugares e pessoas onde o pão do carinho, da ternura, da consolação deverá chegar. Se os gestos com que a caridade se expressa são de ordem material e corporal, o mundo da pobreza e dos problemas humanos também exige as obras chamadas espirituais. Conversemos sobre as obras de misericórdia espirituais nos nossos grupos e famílias, vejamos o modo de as ir colocando nas relações que devem ser de autêntica fraternidade. As nossas famílias e comunidades não estarão a precisar que todos acreditemos na magia da caridade que é capaz de dar bons conselhos, de corrigir os que erram, de ensinar os ignorantes, de consolar os tristes, de perdoar as ofensas, de consolar os aflitos, sofrer com paciência as fraquezas do próximo, rogar a Deus pelos Vivos e defuntos.
Nestas festas concelhias em honra de Santo António, olhemos para as nossas paróquias e preparemo-nos, desde já, para o novo Ano Pastoral que deverá ser um testemunho comunitário, em todas as paróquias, de oferta de pão através de gestos de encontro com todas as carências e necessidades. Que Santo António nos ajude a discernir caminhos de uma Igreja comprometida com a pobreza para ser verdadeiramente Igreja Samaritana. E, como sugestão, vivamos oferecendo aos outros o que gostaríamos que nos oferecessem se viermos a encontrar-nos nessas situações de precaridade e vulnerabilidade.
† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
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