Arquidiocese de Braga -

6 setembro 2021

Cuidar das feridas da Casa Comum

Fotografia Diário do Minho

Homilia na Romaria a Nossa Senhora do Porto de Ave.

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Nesta festa estatutária da Confraria de N. S. do Porto de Ave, olhamos para Nossa Senhora, confiamos na sua intercessão com as nossas intenções e, sobretudo, damos graças pela nossa vida. Precisamos de ser positivos. Depois de um tempo de pandemia que começa a atenuar-se, podemos verificar que há tantas coisas boas. Deixemos de nos lamentar. A vida é algo de maravilhoso. Agradeçamos a Deus, por Maria, tantas coisas que nos foram acontecendo e continuam presentes na nossa vida diária. Recuperemos a alegria de viver e acreditemos que não estamos sozinhos. Os problemas podem ser muitos e grandes. Deus é muito maior. No final desta eucaristia vamos sair daqui com mais vontade de viver.

Querendo estar com Nossa Senhora, teremos de estar com a Igreja. Ela é mãe da Igreja, nunca o esqueçamos. E na Igreja devemos estar, também, com todos os que invocam o nome de Jesus, mesmo que esperados da obediência ao Santo Padre. Num compromisso ecuménico, e não estamos muito habituados a isso, começamos o viver o chamado Tempo da Criação. É momento para viver pela Igreja Católica e por protestantes e ortodoxos. Começa anualmente no dia 1 de Setembro, dia escolhido pelo Papa Francisco para ser o Dia Mundial de Oração pela Criação. Termina no dia 14 de Outubro, festa de S. Francisco de Assis, o santo da paternidade universal de Deus que depois encontra em todas as criaturas verdadeiros filhos desse mesmo Pai. São os irmãos que caminham ao meu lado mas também o irmão sol e a irmã água e tudo o resto que a natureza nos oferece. Tudo entra nesta categoria de irmão ou irmã e, como tal, deveria ser tratado e estimado.

Este ano, o Tempo da Criação tem por tema “Uma casa para todos”. Ver a Terra como a casa comum onde todos habitam. Acreditar que vivemos nesta mesma casa. Fazer de todos uma única família. A natureza é uma casa para todos e não apenas para alguns. Todos têm o direito a usufruir do que é necessário, sabendo que actualmente os recursos naturais estão a beneficiar apenas uma percentagem da população mundial. São muitos aqueles a quem a natureza não está a oferecer o que é necessário quando existe imenso desperdício e coisas que são gastas sem critério. As desigualdades vão-se acentuando e deveríamos ter a coragem de as denunciar. Os cristãos têm o dever de trabalhar por relações justas, de verdadeira fraternidade. A denúncia de tantas situações escandalosas deve entrar nas palavras e nas atitudes dos cristãos e das comunidades, tornando-se capaz de ir moldando uma sociedade em termos de autêntica igualdade.

A economia das diferentes nações tem de mostrar um rosto concretizado na comunhão como o Papa Francisco pretende e sugere. Precisamos de ser capazes de interpretar uma ecologia integral. Não basta falar de iniciativas de preocupação ambiental como já vai acontecendo nos discursos políticos e nas prioridades que os governos apresentam para concretizar o Plano de Recuperação e de Resiliência. Teremos de ir ao fundo da questão e afirmar categoricamente que a natureza nunca será cabalmente respeitada se não existir a fé num pai criador que torna todos e tudo irmão ou irmã. O Papa Francisco dizia recentemente a um movimento da Igreja. “A solidariedade recíproca e com o mundo que nos rodeia requer uma vontade firme de desenvolver e implementar medidas concretas que favoreçam a dignidade de toda a pessoa nas suas relações humanas, familiares e profissionais, combatendo ao mesmo tempo as causas estruturais da pobreza e empenhado-se em proteger o ambiente natural”. 

Cuidar da Casa Comum tem este sentido muito concreto. Não deixar de ter medidas e sobretudo opções para proteger o mundo mas, em simultâneo, lutar contra as formas estruturais da pobreza que afligem a nossa sociedade que poderia ser rica para todos mas continua a desconsiderar a maioria das pessoas humanas. A Terra é uma Casa Comum pois foi criada por um Deus que é Pai de todos.

Em Arquidiocese, estamos a dar início a um novo ano pastoral. Precisamos de começar a programar a vida das comunidades de modo a propor uma caminhada muito concreta para prosseguirmos a nossa caminho sinodal e de compromisso samaritano. Esta consciência da caminhar com todos ao jeito, ao samaritano, faz com que o nosso programa nos sugira, para este ano, a atitude de cuidar. No ano que terminou, a vivência da caridade levou-nos a uma atitude de ver as realidades humanas. Não podemos ficar em considerações. Aceitamos que do amor nascem gestos e vamos organizar a nossa vida para que os nossos gestos nasçam do imperativo do cuidar. Cuidar que terá muitas manifestações. 

Um dos aspetos que nos será sugerido é que teremos de cuidar as feridas da Casa Comum. Aí colocamos as pessoas mas também os atentados contra a natureza. Serão sugeridas outras feridas a cuidar. Hoje, e neste contexto do Tempo da Criação, fiquemos com este compromisso de cuidar das feridas da natureza. Se quisermos iremos encontrar muitas situações e deveremos ser capazes de delinear projectos, unindo as diversas comunidades paroquiais e em articulação com outras realidades que connosco caminham nesta aventura para uma Humanidade unida. Cuidando das feridas da Casa Comum unam-nos a quem quer caminhar connosco. Não trabalhamos por protagonismo. Bastam as causas que queremos assumir com todas as pessoas de boa vontade.

Este cuidado não está fora dos nossos compromissos cristãos. O evangelho de hoje ajuda-nos a compreender. Deveríamos ser capazes de ir redescobrindo a nossa identidade cristã a partir de uma compreensão do significado dos gestos do nosso baptismo. Sabemos que depois do baptismo propriamente dito existem quatros ritos explicativos que sugerem alguns pormenores para vida cristã. Em primeiro lugar, somos ungidos com o óleo do Crisma que nos constitui sacerdotes, profetas e reis. Depois recebemos uma veste branca que nos deveria exigir uma vida de coerência que com a entrega da vela significa que devemos ser luz do evangelho onde Deus nos coloca. Tudo termina com o gesto descrito no evangelho de hoje que condensa um significado da missão que nos é confiada. O que Cristo fez ao surdo acontece connosco, mesmo com a graça de ouvir. A palavra Effatha, que significa “Abre-te”, faz com que os nossos ouvidos se abram e a nossa língua se solte. Trata-se de acolher o evangelho na sua integridade. E hoje está a pedir-nos que ouçamos os gritos da natureza e da Humanidade e ousemos intervir pela palavra e pela acção. Não basta ouvir. Importa ir discernido respostas concretas que devem ser interpretadas de um modo sinodal. Trata-se de um projecto maravilhoso. Os contornos não estão definidos. Juntos podemos sonhar um mundo melhor para todos. Não é só o actual. Garante que a Igreja está a acordar para realidades esquecidas. Muitas vezes dizemos que não podemos fechar-nos nos templos e nos santuários. Estes têm de ser instigadores de um vida mais comprometida com o projecto de Deus para que todos sejam felizes no respeito pelas plantas, animais e todos os seres vivos.

Quero rezar a Nossa Senhora para que faça com que todas as paróquias peguem no Programa Pastoral. A pandemia não permitiu a concretização de muitas iniciativas. Regressemos ao entusiasmo daqueles que acreditam e que querem fazer maravilhas como Deus as fez por intermédio de Maria. Que o novo normal que se espera signifique um apaixonar-se pela caridade que nos une numa caminhada conjunta. Que as nossas comunidades paroquiais se encontrem nos diversos conselhos para intuir o que Deus lhes pede neste momento histórico. Vamos desconfinar a vida das paróquias. Teremos sempre muito respeito pelas orientações das Entidades de Saúde. Só que há muito trabalho a fazer. Nos gestos de cada um e nas coisas pequenas que mostram uma mentalidade nova característica de um relacionamento mais próximo de todas as pessoas e do mundo da natureza e dos gestos colectivos que deveríamos ser capazes de assumir. Precisamos de delinear novas estratégias. Não fazer nada ou contentar-se com os mínimos é desmotivador. 

Que Nossa senhora nos conceda o dom do entusiasmo e o sentido da responsabilidade. Se a pandemia deteve os nossos passos na realização de muitas actividades, voltemos ao normal mas com muita criatividade. Não bastará repetir. Muita coisa desapareceu e não voltará mais. Imaginemos coisas novas com ousadia e resiliência. Não encontramos Nossa Senhora só aqui no Santuário. Ela vai à nossa frente como mostrou em Canã e no encontro com a sua prima Santa Isabel. Sobretudo olhemos para o Calvário como momento onde as feridas de Cristo eram mais do que evidentes. Maria poderia ter fechado os olhos ou estar longe de Jesus. A cena do Calvário será sempre chocante e difícil de presenciar para todos mas sobretudo para uma mãe. Sozinha com João esteve ao lado das dores de Cristo. Hoje ela caminhará connosco nas alegrias e prazeres da vida mas sobretudo conduzir-nos-à ao encontro de tanto sofrimento. Peguemos no novo programa e vamos cuidar das feridas.

 † Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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