Arquidiocese de Braga -

2 fevereiro 2024

Eucaristia e vida consagrada - Rezar a esperança

Fotografia DM

2 de fevereiro de 2024, Festa da Apresentação do Senhor

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A vida consagrada liga-se intimamente à Eucaristia. «A própria Igreja recebe os votos dos que professam (..), associando a oblação deles ao Sacrifício eucarístico» (Ritual da Profissão religiosa).

Todas as vezes que celebramos o mistério de fé e de luz, podemos reviver a experiência dos dois peregrinos de Emaús: «abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O ao partir do pão» (cf. Lc 24, 31-35).

1. Memorial, sacrifício e banquete / obediência, castidade e pobreza

A Igreja recebeu a Eucaristia do Senhor Jesus Cristo como o dom por excelência, porque é dom d’Ele mesmo e por isso, é verdadeiramente o mistério da fé e o sacramento do mistério da Páscoa. Em S. Paulo, o mistério de Cristo indica o plano divino da salvação, que esteve escondido durante milhares de anos e que foi plenamente realizado em Cristo. O ponto central do plano salvífico de Deus é o mistério da Páscoa. 

Deste único e fontal mistério de Cristo nasce a Eucaristia, a partir de três modelos: anamnético; sacrificial; convivial. Ousamos interligar estes três modelos com os três conselhos evangélicos: a obediência generosa; a castidade perfeita; a pobreza alegre.

a) Eucaristia-memorial (obediência)

A anamnese (= memorial, re-cordar “tornar presente ao coração”) é uma estrutura celebrativa de fundamento bíblico que passou à celebração cristã, porque é a realização de uma promessa. O modelo da Eucaristia recorre a esta categoria de memorial – «fazei isto em memória de mim» – surgindo como o elemento estrutural da narração da instituição realizada por Jesus na noite da última ceia e dada como um mandamento aos seus discípulos. Ao agregar estas palavras à narração da ceia, a Oração Eucarística torna-se uma declaração de querer fazer o que Jesus disse para fazer, uma menção explícita à sua memória, qual presença sacramental permanente de Cristo.

A Eucaristia é, pois, a obediência ao mandamento de Cristo de fazer o que Ele mesmo fez, conforme as quatro tradições neotestamentárias (Mc 14,22-24; Mt 26,26-28; Lc 22,17-20; 1Cor 11,23-25), tornando-se a anamnese do mistério da fé, isto é, o mistério da Morte e Ressurreição de Cristo e profecia da sua última vinda, como se aclama na Liturgia: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde Senhor Jesus». Isto é rezar a esperança!

A Eucaristia é, portanto, memória do sacrifício e do banquete pascal, tal como realça o Catecismo da Igreja Católica: «a Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da Cruz e o banquete sagrado da comunhão no Corpo e Sangue do Senhor» (n.º 1382).

Trata-se da comemoração do mandato de Cristo, não apenas como recordação do passado, mas como proclamação das maravilhas que Deus operou na história da salvação por amor da humanidade, imprimindo ao caminho cristão o passo da esperança. 

A vida consagrada é também memorial através da obediência, qual, memória viva do modo de existir e de agir de Jesus.

Na verdade, a obediência é o núcleo dos conselhos evangélicos, como atualização do evento fundador, que é Cristo ressuscitado. A vida consagrada só pode ser memorial de Cristo se continua a tornar presente a mesma forma de vida de Cristo. Ele é o obediente por excelência, porque não veio para fazer a sua vontade, mas a d'Aquele que O enviou. O seu modo de ser e de agir entrega-o nas mãos do Pai. Por obediência filial, assume a forma de servo: «despojou-Se a Si mesmo tomando a condição de servo (...), obedecendo até à morte e morte de cruz» (Fil 2, 1-8).

Inúmeros são os testemunhos desta obediência, em especial Maria, que é Mulher eucarística com toda a sua vida. 

É notório que pela fidelidade criativa dos carismas, e à imitação da Santíssima Virgem, na docilidade ao Espírito Santo, esta mesma vida prossegue «por Cristo, com Cristo e em Cristo».

O testemunho dos fundadores ensina que a lectio divina, a centralidade da Eucaristia, os Salmos, a adoração eucarística, e a contemplação dos mistérios de Cristo na perspetiva mariana do Rosário, asseguram uma vida espiritual, sem a qual todos os compromissos pastorais, a vida fraterna e o empenho pelos pobres arriscariam o cansaço e o vazio.

O culto cristão, pode resumir-se nas palavras de Paulo: «Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o nosso culto espiritual» (Rm 12, 1). Em Cristo e no seu Espírito, toda a existência cristã se torna um sacrifício vivo e agradável a Deus, isto é, um autêntico culto espiritual.

b) Eucaristia-sacrifício (castidade)

O sacrifício é um dos elementos centrais do culto do Antigo Testamento que se tornou paradigma para a compreensão do mistério pascal de Cristo, centro de qualquer ação litúrgica, especialmente da celebração eucarística. A Eucaristia é sacramento do sacrifício de Cristo. A Igreja celebra o sacrifício de louvor através de Cristo e oferece ao Pai o que Ele próprio lhe deu, isto é, os dons da criação, o pão e o vinho, tornados, pelo poder do Espírito Santo e pelas palavras de Cristo, Corpo e Sangue do mesmo Jesus Cristo.

À Eucaristia atribui-se o conceito de sacrifício, porque torna presente o sacrifício da cruz, conforme as palavras da narração da ceia «Isto é o meuCorpo que será entregue por vós» e «Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados». A última ceia Jesus é uma antecipação profética do cumprimento das Escrituras realizado na sua Paixão, Morte e Ressurreição. 

A comunidade reunida oferece ao Pai o sacrifício de Cristo e associa-se a Cristo (ao mesmo tempo, o cordeiro, o altar e o sacerdote), com a oferta da sua vida e do seu compromisso cristão, porque o mistério de Cristo, alfa e ómega, torna-se contemporâneo a todo o ser humano em todos os tempos.

A vida consagrada associa-se ao sacrifício de Cristo, especialmente pela castidade, isto é, como expressão máxima do amor a Deus e aos outros. Jesus vive o seu amor e a sua entrega total em chave eucarística. A liturgia refere o mesmo para as professas na epiclese da bênção solene ou consagração, quando pede que brilhe nelas o esplendor do Batismo e a inocência de vida, para que no encontro definitivo com Deus possam ouvir a voz do Esposo que as convida para as núpcias eternas.

Na celebração do memorial da Eucaristia não existe oposição entre sacrifício e banquete.

c) Eucaristia-banquete (pobreza)

O sacramento da Eucaristia é igualmente banquete pascal: por um lado, por se tratar da refeição que o Senhor tomou com os seus discípulos antes da sua Paixão e Morte; e por outro lado, por podermos participar no Corpo e Sangue do Senhor, para entrar numa comunhão plena com Ele.

Ao dizermos que a Eucaristia é o sacramento da Páscoa, salientamos a realização sacramental dos mistérios de Cristo no centro da Liturgia, e mesmo de toda a vida cristã.

A pobreza na vida consagrada testemunha a autenticidade do banquete pascal, fazendo da comunidade da mesa, uma comunidade de vida. Da Eucaristia renasce a fantasia da caridade no mesmo serviço de Cristo a todos. 

No entanto, «para que serve estar desprendido de tudo, se não estamos desprendidos de nós mesmos?» (G. Bernanos). Só na gratuidade existe o autêntico amor, do qual a Eucaristia é sacramento.

Sacrifício, memorial e banquete são, por conseguinte, três dimensões inseparáveis do mesmo e único sacramento da Eucaristia, o sacramento do mistério pascal de Cristo. A Liturgia sublinha esta tripla dimensão eucarística na antífona do cântico do Magnificat nas Vésperas II da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo: «ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a sua paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória». 

 

+ José Manuel Cordeiro