Arquidiocese de Braga -

19 julho 2025

As estradas não têm de ser campos de batalha

Fotografia Vladislav Bychkov/Unsplash

Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga

Nota do Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga

As notícias sobre acidentes de viação com vítimas mortais ocorridos nas estradas nacionais – e, particularmente, nas da nossa arquidiocese – têm sido excessivamente frequentes. A quantidade de mortos em consequência de acidentes de motas bastaria, por si só, para impressionar. Conforme foi divulgado esta quinta-feira, dia 17, na área tutelada pela GNR registaram-se, desde Janeiro até 15 de Julho, mais de quatro mil acidentes com motos, que causaram a morte de 67 pessoas e feriram gravemente 333, sendo jovens muitas das vítimas. A situação, que a todos diz respeito, é muito inquietante.

Um relatório da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária [1] indica que, de Janeiro a Outubro de 2024, no continente e nas regiões autónomas, os acidentes de viação provocaram 405 vítimas mortais, 2.304 feridos graves e 37.081 feridos leves. O número de vítimas mortais dentro das localidades foi superior ao apurado fora delas. No distrito de Braga, houve um aumento da sinistralidade grave nos primeiros dez meses do ano passado, tendo os acidentes rodoviários provocado mais mortos (+16,1%) e mais feridos graves (+9,6%) do que no período homólogo do ano anterior.

Em meados de Julho deste ano, as consequências mais graves da sinistralidade rodoviária no distrito de Braga traduziam-se já em 19 mortos e 89 feridos graves.

Perante este drama que quotidianamente ocorre nas estradas portuguesas, não é possível desviar o olhar, considerando que esta tragédia é um fruto do azar. Não é o destino que dita a maioria ou, pelo menos, uma grande parte dos acidentes. Eles são, de facto, muitas vezes evitáveis.

“A denúncia de situações perigosas, como as que são causadas pelo trânsito, faz parte da missão da Igreja, ou seja, é realização da sua missão profética”, dizia há um bom par de anos o Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes [2]. Olhando para o preocupante número de acidentes, o organismo que mais tarde integraria o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral afirmava ser “necessário fazer a denúncia da periculosidade de certas competições automobilísticas e das corridas ilegais pelas estradas, que constituem um grave risco”.

Num documento dirigido a todos os que andam na estrada (na altura, as trotinetas não existiam, não representando o acrescido perigo com que hoje nos confrontamos), observava-se algo bastante comum: mesmo sendo bastante usual indicar, como causa de um acidente, as condições de pavimentação da estrada, um problema mecânico ou alguma adversidade meteorológica, “é necessário sublinhar que uma grandíssima parte dos acidentes automobilísticos são determinados por leviandades graves e gratuitas – quando não se trata mesmo de estupidez e arrogância no comportamento do motorista ou do peão – e portanto do factor humano”.

Um “decálogo” do motorista

Dessa constatação nascia um “‘decálogo’ do motorista”, uma proposta adequada para pacificar as estradas. Ainda que reconhecendo que poderia ser formulado de modo distinto (e eventualmente actualizável), o “decálogo” fornece dez regras que a todos se deveriam impor:

1. Não matarás.

2. A estrada será para ti instrumento de comunhão no meio das pessoas e não de dano mortal.

3. Cortesia, rectidão e prudência ajudar-te-ão a superar os imprevistos.

4. Serás caritativo e ajudarás o próximo na necessidade, especialmente se for vítima de um acidente.

5. O automóvel não será para ti expressão de poder, de domínio e ocasião de pecado.

6. Convencerás com caridade os jovens, e não só, a não se porem ao volante quando não estiverem em condição de o fazer.

7. Apoiarás as famílias das vítimas de acidentes.

8. Farás com que a vítima e o automobilista agressor se encontrem num momento oportuno, a fim de que possam viver a experiência libertadora do perdão.

9. Na estrada, tutelarás a parte mais frágil.

10. Sentir-te-ás responsável pelos outros.

O documento do referido Conselho Pontifício nota que, “sem dúvida, nem o automobilista, nem o motociclista ou o peão imprudentes desejam as consequências fatais de um acidente por eles provocado, e nem sequer têm a intenção de causar prejuízo à vida ou aos bens dos outros”. O certo é que quando se circula imprudentemente coloca-se em perigo vidas e bens, “o que pressupõe uma violação da lei moral, por causa da índole voluntária do acto”.

O utente da estrada, automobilista, ciclista ou peão – e é necessário acrescentar o condutor de trotinetas –, tem a “responsabilidade moral” de respeitar o mandamento que impõe: “Não mates”. “Os pecados mais graves contra a vida humana, contra o quinto mandamento, são o suicídio e o homicídio, mas este mandamento exige também o respeito pela própria integridade física e psíquica e pela dos outros”. As distracções e as negligências imprudentes, “cuja gravidade moral se mede segundo o seu grau de previsibilidade e, de qualquer modo, de intencionalidade”, não respeitam esse mandamento. É que, “além da proibição de matar, ferir ou mutilar directamente, o mandamento do Senhor proíbe todo o acto que possa provocar indirectamente tais danos”.

“A lei moral proíbe que se exponha alguém a um sério risco, sem grave motivo, como também que se rejeite a assistência a uma pessoa em perigo”, refere o texto dirigido aos utentes da estrada, acrescentando que os que, violando “a virtude da temperança”, abusando, por exemplo, do álcool (ou de drogas), “em estado de embriaguez ou por um exagerado gosto pela velocidade, põem em perigo a incolumidade de outrem e a própria nas estradas […] e tornam-se gravemente culpáveis”.

O Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes recorda que, já em 1956, o Papa Pio XII exortava os automobilistas, particularmente os menos pacientes: “Vós não vos esqueçais de respeitar os utentes da estrada, de observar a cortesia e a lealdade para com os outros condutores e peões, e de lhes mostrar o vosso carácter abnegado. Demonstrai o vosso orgulho, sabendo dominar uma impaciência muitas vezes bastante natural, sacrificando por vezes um pouco do vosso sentido de honra para fazer triunfar a gentileza, que é um sinal de verdadeira caridade. Assim, não somente podeis evitar acidentes desagradáveis, mas contribuireis para fazer do automóvel um instrumento ainda mais útil para vós mesmos e para os outros, e capaz de vos suscitar um prazer de melhor qualidade”.

A preocupação da Igreja com o que se passa nas estradas não é nova, ainda que a gravidade da situação imponha que seja muito mais audível.

As estradas como lugares de virtude

Embora isso possa hoje parecer estranho, as estradas podem ser lugares para o exercício de diversas virtudes, como faz notar o Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes.

A virtude da caridade exercita-se em relação a todos aqueles com quem partilhamos as estradas, “cuja vida não se pode pôr em risco com manobras erradas e imprudentes, que podem causar dano tanto aos passageiros como aos peões”. O bom condutor é aquele que “deixa passar amavelmente o peão, não se sente ofendido se outro o ultrapassa, não impede aquele que quer circular mais rapidamente, não se vinga”.

A prudência é uma das virtudes “mais necessárias e importantes, em relação à circulação rodoviária”. É ela que “exige uma adequada margem de precauções com que enfrentar os imprevistos que se podem apresentar em qualquer ocasião”. A prudência impede, por exemplo, que se use o telemóvel enquanto se conduz. A prudência impõe que os utentes da estrada não circulem a uma velocidade excessiva; que calculem devidamente o tempo e o espaço necessários em caso de se impor uma travagem; que não sobreestimem a respectiva habilidade e prontidão; e que prestem continuamente atenção. Também os companheiros de viagem têm responsabilidades próprias.

Outra virtude a cultivar é a da justiça. Respeitando-a, o utente da estrada deverá reparar um eventual prejuízo que cause a outrem. “Se, conscientemente, for responsável, deve preocupar-se a fim de que a vítima, ou os seus parentes próximos, sejam adequadamente indemnizados”. E “se o prejuízo se produzir de maneira completamente independente da sua vontade, será de igual modo obrigado, em consciência, a indemnizar a vítima segundo o que prescreve a lei e, em caso de contestação e processo, deverá respeitar a sentença”

A esperança é, finalmente, uma virtude que deve distinguir o condutor e o viajante. A esperança de chegar em segurança ao destino. “Para os crentes, a razão desta esperança, mesmo tendo em consideração os problemas e os perigos da estrada, está na certeza de que, na viagem rumo a uma meta, Deus caminha com o homem e preserva-o dos perigos. Em virtude desta companhia de Deus e graças à colaboração do homem, ele chegará ao destino”.

O Papa Francisco acrescentou às questões decisivas da prevenção da sinistralidade rodoviária um tema hoje incontornável [3]. Associado à formação para uma cultura de segurança nas estradas, está o respeito pelo meio ambiente susceptível de tornar “a mobilidade verdadeiramente sustentável e acessível”.

Ao receber, em Janeiro deste ano, os representantes do Automóvel Clube da Itália, Francisco incentivou a promoção de mais acções de consciencialização, designadamente nas escolas, para que se cumpra o objectivo de haver “zero vítimas nas estradas”. Mas, além desse programa educativo, que “é um dever”, pediu respeito pelo meio ambiente. É que, perante o número dos veículos, o consumo de energia não renovável e o custo do combustível, a poluição e o tráfego com impacto inegável, é “a qualidade de vida que está em jogo!”

Precisamos de estradas seguras, sem vítimas. A Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga exorta a que cada um cumpra a sua parte para que as estradas não sejam campos de batalha.

 

Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga

Julho de 2025

 

 

[1] Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – “Relatório Outubro 2024”, 9 de Abril de 2025. Disponível em: www.ansr.pt/Estatisticas/RelatoriosDeSinistralidade/Documents/2024/relatorio_de_sinistralidade_24h_e_fiscalizacao_rodoviaria_outubro_2024_vf.pdf

[2] Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – “Pastoral para os utentes da estrada”. Agosto de 2007. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/pom2007_104-suppl/rc_pc_migrants_pom104-suppl_orientamenti-po.html

[3] Andressa Collet – “Francisco: educar para a segurança nas estradas e por uma mobilidade sustentável”. Vatican News, 23 de Janeiro de 2025. Disponível em:

https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-01/papa-francisco-audiencia-automovel-clube-italia-2025.html