Arquidiocese de Braga -

26 janeiro 2015

Um bálsamo

Fotografia Pedro Castro Cruz | Fotografia: Pedro Castro Cruz

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Entre flashes de notícias e imagens relacionadas com o Charlie Hebdo, vem-me frequentemente à memória a serenidade da Sainte-Baume, a frescura de um “Santo Bálsamo”, às portas de Marseille, importante porta de entrada de imigrantes africanos e asiáticos em França e na Europa. Na mesma França em clima de tensão, proponho considerarmos um lugar de paz.

Para além disso, pondo em confronto a ideia de cartoon com a do esquisso de arquitectura, muitas vezes achei o croquis de Le Corbusier, representando o corte conceptual do projecto para o complexo da Sainte-Baume, uma caricatura da montanha que se deixa rasgar e prostrar, para descobrir algo melhor (o mar).

Trata-se de um lugar que condensa natureza forte – um maciço rochoso que se eleva na planície; mitologia – reza a lenda que na gruta se refugiou Maria Madalena no final da vida (na vila em baixo, na Basílica de Saint Maximin, se conserva uma relíquia da Santa); construção vernacular –um mosteiro de guarda à gruta, a cargo dos dominicanos, construído de modo surpreendente na parede rochosa; teoria e projecto de arquitectura –Le Corbusier trabalhou a partir de 1948 para e com Édouard Trouin num conjunto de projectos não construídos, uma intervenção à escala da paisagem, centrada na Basílica escavada na montanha (inclui ainda a seus pés um volume-ponte apoiado sobre a parede como rampa de acesso, um museu, um novo parque, dois hotéis e a cité permanente, casas construídas em taipa); e por último, edifício construído – os Ateliers La Sainte-Baume (1962), pequeno complexo de galeria e estúdios, no qual Le Corbusier intervém sobre pre-existências militares (uma nave abóbadada e uma torre-vigia) às quais acrescenta um volume linear (com entradas sequenciais para os estúdios, rematado por uma caixa de cobertura ondulante) jogando mais com relações de composição que físicas, num ambiente de collage, em torno de um pátio, espaço comunitário.

À data da nossa visita, o edifício estava abandonado e com efeito proporcionava mais a emoção de nos sabermos perante uma obra do mestre, do que propriamente uma emoção arquitectónica. Essa sim, teve lugar na visita que começa num pequeno-almoço sob a ramada com a pouca luz do nascer do Sol, olhando o Pilon (o maciço montanhoso) e culmina sobre ele, olhando o mar. A subida demorada não se faz senão a pé, em tom de peregrinação, através do parque verde, da escadaria em pedra que logo dá lugar aos corredores na pedra, até chegar às portas do Mosteiro e por fim à gruta, ampla e escura. Aqui nos detemos imaginando o projecto de rasgamento rocha adentro, no breu, até ao banho de luz sobre o Mediterrâneo. Apesar do cansaço, a escalada ainda continua até ao cimo último, numa capela-de-metro-quadrado marcando o ponto mais alto do Pilon.

O retorno será facilitado pela descida mas imbuído da difícil missão de partilhar a experiência, de anunciar a possibilidade (redescoberta) de passar limites, de ultrapassar barreiras (para a compreensão e para o bem do outro): a possibilidade de escavar montanhas.