DACS | Fotografias: Ana Marques Pinheiro/Flávia Barbosa | 10 Mar 2018
A segunda conferência do Ciclo Nova Ágora 2018 debruçou-se sobre o tema "cidadania e responsabilidade social".

Educação, pensamento, política e acção são algumas das chaves para evitar a fragmentação da sociedade e procurar o bem comum, apontadas pelo Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, pelo ex-reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, pelo historiador Pacheco Pereira e pela professora da Universidade do Minho Isabel Estrada. O debate, moderado pelo director do Porto Canal, Júlio Magalhães, realizou-se esta Sexta-feira à noite, no Espaço Vita, na conferência “Olhares sobre a cidadania e responsabilidade social”.

 

Mais inconformismo, menos "palavras estéreis"

Foi com um apelo ao inconformismo que o Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, introduziu o tema “cidadania e responsabilidade social”, no palco do Espaço Vita.

“O discurso exige, muitas vezes, inconformismo, atitudes contracorrentes e não permitir que agendas políticas ou ideológicas tomem as rédeas do nosso futuro”, referiu. Para o Arcebispo, esse inconformismo surge em sintonia com a esperança – tema central do programa pastoral da Arquidiocese de Braga para este ano.

D. Jorge Ortiga sublinhou ainda a importância de todos assumirem responsabilidades em matéria de cidadania activa e responsabilidade social, colocando os discursos em prática, para que não se tornem “meras palavras estéreis”.

A apatia com que o povo acompanha as notícias sobre a actualidade, sem se interrogar acerca do que poderá fazer para mudar a realidade, é algo que preocupa o Arcebispo. “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”, advertiu.

O prelado relembrou ainda o conceito de cidadania como o “direito e o dever de cada indivíduo de participar activamente na vida e no governo do país”.

“Cidadania é, por isso, um acto de responsabilidade na prossecução do bem comum. Um bem que não se esqueça do indivíduo nem sobretudo dos mais vulneráveis e desfavorecidos. Existem minorias silenciosas a quem devemos, por imperativo de consciência, emprestar a nossa voz. Penso ser este o objectivo que nos congregou esta noite”, assinalou o Arcebispo.

 

Direitos políticos: instrumentos de luta social

A professora da Universidade do Minho Isabel Estrada partilhou com a plateia algumas reflexões em torno do conceito de cidadania social, assinalando duas questões que a inquietam: a ideia de que a cidadania política “está gasta” e que só nos deve interessar a cidadania social e a visão de que a cidadania social pode concretizar-se sem o Estado.

Isabel Estrada mostrou-se preocupada com a crescente desvalorização do papel da política, acompanhada da descrença no exercício de direitos políticos. A professora ressalvou, contudo, que os direitos políticos são “as únicas armas” que garantem o exercício dos direitos sociais, sendo, por isso, “instrumentos de luta social”.

“Enquanto detentora de direitos sociais, sou um cidadão passivo. Enquanto detentora de direitos políticos, sou um agente activo, sou chamada a intervir”, reforçou.

 
Preocupada com a ideia emergente de que os direitos sociais podem ser realizados sem o Estado, Isabel Estrada alertou para o facto de o Estado Social implicar um compromisso de apoio à sociedade e ser chamado a intervir sempre que haja necessidade.

A professora da Universidade do Minho destacou ainda a importância de um Estado Social que obedece ao princípio da universalidade: apoia todos os cidadãos, sem fazer juízos morais.

Se a acção solidária coubesse exclusivamente à comunidade, sem a intervenção do Estado, advertiu a oradora, o princípio da universalidade deixaria de ser considerado, dando lugar a julgamentos morais.

“O princípio comunitarista actua em função de outros critérios, não universais: critérios de avaliação da condição moral daquele indivíduo para merecer a ajuda”, sublinhou.

Para a convidada, a ideia de a sociedade suprir o papel do Estado na sua missão solidária é “perturbadora”, uma vez que corríamos o risco de transformar a cidadania social “num bem que se adquire por mérito próprio”.

 Cidadania – sinónimo de decisão

O ex-reitor da Universidade de Lisboa António Sampaio da Nóvoa frisou a relevância da decisão como “factor principal de cidadania”, a par da necessidade de se criarem novas formas de participação dos cidadãos na vida política.

“Cidadania implica direitos, deveres, participação, mas também tem a ver com decisão”, explicou.

Para o antigo reitor da Universidade de Lisboa, hoje em dia é difícil perceber-se onde estão os lugares de decisão, e é essencial a “criação de espaços de discussão, debate e decisão” para o pleno exercício da cidadania.

Sampaio da Nóvoa elogiou os jovens de hoje, que têm vindo a construir novos espaços de discussão, e apontou a necessidade de se alterarem algumas leis eleitorais, por forma a reforçar-se a capacidade interventiva dos cidadãos.

No entanto, para o ex-candidato à presidência da República, este “reforço da capacidade colectiva de decisão” pode desencadear alguma perda de qualidade das decisões, já que estas se devem basear no conhecimento, na ciência e na cultura científica.

Sampaio da Nóvoa atribui ao excesso de presença do mundo digital alguma possível perda de qualidade de decisão colectiva, uma vez que os meios digitais permitem a propagação de “ideias pré-concebidas, não fundamentadas e irracionais, sem base científica ou, sequer, sensatez”, afectando os níveis de decisão.

Para o orador, o reforço da capacidade colectiva de decisão implica também um trabalho comum, “independentemente de perspectivas e pontos de vista”. E a internet, que prometia ser uma “janela para o mundo”, tornou-se, a seu ver, “um lugar de isolamento e fragmentação”, onde apenas se procura por pessoas semelhantes, com crenças semelhantes.

As dimensões do conhecimento e da criação de espaços comuns de reflexão são, para Sampaio da Nóvoa, “absolutamente essenciais” para o factor decisão.

 

Redes sociais, demagogia, solidão e excesso de ruído: o declínio das relações humanas

O historiador Pacheco Pereira revelou-se um pessimista assumido no que respeita ao futuro, afirmando que “nunca como agora se assistiu a um tão grande desgaste dos mecanismos democráticos”. “É provável que possamos caminhar para um mundo pior”, acrescentou.

No entanto, não excluiu a palavra esperança do seu discurso, e deixou algum alento com o mote: “Pessimismo na inteligência, optimismo na vontade”.

Remetendo à “Nova Ágora” do passado, Pacheco Pereira assinalou que o “ágora” de hoje são as redes sociais, o que “enfraquece a democracia”, uma vez que a “hierarquia do saber é posta em causa”.

“O que se passa hoje é que há uma espécie de igualitarismo agressivo, de nova ignorância. Enquanto a antiga ignorância era um reconhecimento de uma fragilidade, a nova ignorância tende a ser igualitária e agressiva. Porque eu publico na internet, porque eu tenho um blog, porque eu posso falar, teoricamente, para milhões de pessoas, a minha opinião tem o mesmo valor do que a opinião de quem sabe”, esclareceu.

A demagogia tem, na opinião do orador, substituído “mecanismos fundamentais na democracia”, conduzindo até, em algumas situações, à tentativa de substituir a lei por decisões demagógicas.

Pacheco Pereira considera o equilíbrio entre emoção, raciocínio e moral fundamentais para a democracia e crê que o mundo digital e os mecanismos tecnológicos têm causado um desequilíbrio entre os três factores.

O “excesso de barulho” nas redes sociais também tem gerado, na opinião do historiador, conversas desprovidas de conteúdo, pondo em risco a conversação lógica e o silêncio necessário para pensar.

O orador considera ainda que as redes sociais e os dispositivos electrónicos são responsáveis pela escassez e empobrecimento das relações humanas e pela solidão de muitos utilizadores. “Não há nada mais solitário do que uma pessoa a conversar num chat às 3h da manhã”, referiu. Mas a culpa não é das máquinas, acrescentou, mas antes da sociedade e do modo como os cidadãos a constroem.

“Estamos a criar uma sociedade muito solitária. É nossa obrigação travar, criar um código de conduta”, desafiou a plateia. Acredita que a solução para uma mudança de rumo passa pela educação, desde o Jardim de Infância ao papel da família, onde a socialização entre pais e crianças é cada vez menor graças ao recurso a dispositivos como a televisão.

O encontro contou ainda com a actuação do coro João Paulo II, que abriu a noite de debate com música e representação teatral.

Os próximos “Olhares sobre” decorrem na Sexta-feira dia 16, e irão incidir sobre o “envelhecimento e qualidade de vida”, na última conferência do ciclo deste ano.

O debate terá o contributo do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José Vieira da Silva, do fundador do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, Manuel Sobrinho Simões, e do coordenador da Reforma do Serviço Nacional de Saúde (Cuidados Continuados Integrados), Manuel Lopes. A moderação estará à responsabilidade da jornalista da SIC Conceição Lino.