Arquidiocese de Braga -

17 abril 2014

MADE IN ECCLESIA

Fotografia

Homilia de D. Jorge Ortiga na Missa do Lava-Pés.

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Made in Ecclesia

Homilia na Missa do Lava-Pés

1. Experiência Humana

No filme Ben-Hur, que nos relata a vida de um judeu que se cruza com a vida de Jesus, há um pormenor cinematográfico que nos fascina: é que o rosto de Jesus nunca aparece no filme, apenas os seus gestos. E como é belo aquele momento em que Judá de Ben-Hur retribui a Jesus o gesto do copo de água, quando Ele caminhava rumo ao Calvário. Posto isto, eu considero que ser cristão é isto mesmo: é apenas retribuir aos outros aquele mesmo gesto amoroso de Jesus, porque, embora já não vejamos o seu rosto, a mística dos seus gestos permanece.

2. Liturgia da Palavra

A liturgia da Palavra de hoje relata-nos um dos gestos mais inesperados e surpreendentes de Jesus. Mais do que um gesto de humildade, o lava-pés é a verdadeira ordenação sacerdotal dos apóstolos.[1] O próprio rito bracarense, ao colocar o gesto do lava-pés no início da celebração, e não no pós-liturgia da Palavra, introduz-nos no espírito de que, antes de entrarmos na parte central da eucaristia, precisamos de nos auto-avaliar diante deste gesto de onde tudo parte e onde tudo chega. Sem vida de verdadeiro serviço, a fé não é celebrada de forma “digna e bela”.

Só assim é que podemos compreender as palavras de Paulo na segunda leitura: “Sempre que comerdes deste pão e beberdes deste Cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha.”

Anunciar a morte do Senhor é, paradoxalmente, anunciar a dádiva da Sua vida por todos nós. Por isso, a Eucaristia é um memorial: faz memória desse amor por nós. Mas ao contrário do que possamos pensar, a eucaristia não se trata da Última mas sim da Primeira Ceia, porque continuamos ainda hoje à mesa com Jesus, celebrando no altar da vida esta Ceia com carácter salvífico, como nos recorda a primeira leitura.

3. Sinais dos Tempos/Desafio Pastoral

  O Papa João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia, publicada a 17 de abril de 2003, aponta a Eucaristia como o momento privilegiado de união íntima com Jesus. Salienta ainda, nesse documento, a dimensão sacrificial da Eucaristia, pois nela actualiza-se o sacrifício salvífico de Cristo na Cruz; a presença real de Cristo na Eucaristia, transubstanciado no pão e no vinho consagrados; a relação entre o Sacramento da Penitência e a Eucaristia; e o desafio de uma espiritualidade eucarística, tendo como referência Maria, a mãe de Jesus.

Viver uma espiritualidade eucarística traduz-se numa oferta radical de si próprio aos outros, mediante o exercício da caridade e da partilha. E sem esta espiritualidade eucarística, na qual a fé celebrada se transforma em fé vivida, dificilmente conseguiremos produzir aquele mesmo gesto do Papa João Paulo II quando perdoou o turco Ali Agca, o homem que o tentou matar na praça de S. Pedro a 13 de Maio de 1981.[2]

E quando não há este encontro pessoal e apaixonante com Cristo na Eucaristia, a nossa fé reduz-se a uma mera colecção de conteúdos catequéticos, a uma obediência fundamentalista da disciplina moral da Igreja e a um conjunto de práticas religiosas obrigatórias, que muitas vezes geram em nós revolta e desilusão. E se os cristãos são peritos nalguma arte, sem dúvida que é a arte da caridade, que parte e se renova no Sacramento da Eucaristia. E porquê?

Porque o amor que Jesus tem por nós não é um amor de telenovela, como referiu o Papa Francisco, isto é, um amor programado e camuflado, mas um amor que possui a qualidade da concretude: um amor que se traduz em gestos reais e não em palavras ocas.

Hoje fala-se muito do problema da dívida externa, do resgate financeiro do país, do renegociar ou reestruturar para deixar de depender do financiamento estrangeiro. Não me compete entrar na confusão de tantas opiniões que nos confundem. Penso, porém, ser imperioso e urgente dar prioridade a uma agenda social que comprometa a todos, através de respostas concertadas em todos os domínios.

Quis, nesse sentido, que a cerimónia do Lava-Pés tivesse um significado especial. Mais do que um rito memorial e fidedigno, pretendi que fosse uma interpelação à sociedade. Foi com esse intuito que lavei os pés a pessoas de situação económica estável e com papel activo na comunidade. Pessoas que vivenciam o desemprego de longa duração. Pessoas que ficaram dependentes do consumo de drogas. Pessoas que ficaram sem casa. Pessoas licenciadas que procuram o primeiro emprego. Pessoas que ficaram com os seus negócios arruinados. Pessoas que vivem em famílias monoparentais. Pessoas que foram vítimas de violência doméstica. Pessoas portadoras de doenças graves e incuráveis. E pessoas isoladas, sem qualquer suporte familiar. Lavar os pés a estas pessoas do centro e da periferia da sociedade (e da Igreja) significa perpetuar o encontro com verdadeiros rostos de Cristo, para que os gestos duma solicitude terna e meiga entrem no nosso pensar e agir, onde o compromisso acontece não só no assistencialismo mas sobretudo na promoção, talvez heroica perante o feroz egoísmo imposto pelo consumismo, duma humanidade que deveria ser fraterna e acreditar na força e valor dos gestos por mais pequenos que sejam.

Quero ainda, confessar que é com grande surpresa que tenho recebido inúmeros testemunhos de como a ideia do “café suspenso”, lançada no Tempo da Quaresma, se proliferou pela Arquidiocese e tem possibilitado uma acção mais directa e discreta sobre a denominada “pobreza envergonhada”. Não será isto um sinal a desafiar a criatividade do amor?

4. Conclusão

Peçamos ao Senhor que nos conceda a “alegria da humildade” para nos lançarmos na aventura dos gestos caritativos que podem salvar muitas pessoas da miséria humana, material e espiritual. A nossa fé celebrada somente dentro dos templos não é suficiente. Não podemos prescindir da Eucaristia, pois ela tem um antes e um depois, isto é, uma vida de encontros ou de desencontros, de atenção aos outros ou de fechar os olhos dando expressão à “globalização da indiferença”.

+ Jorge Ortiga, A.P.

17 de abril de 2014.



[1] Cf. D. António Couto, Quando Ele nos abre as Escrituras, 89.

[2] Cf. Andrea Riccardi, João Paulo II. A biografia, 221.